Descoberto cemitério de Marcianos nos Açores

A reinterpretação de estruturas arqueológicas tem vindo a fomentar a ideia fantasiosa de um povoamento dos Açores anterior à chegada dos portugueses.

Desde há duas semanas tem sido noticiada a eventual existência de evidências arqueológicas de uma ocupação humana dos Açores anterior à presença portuguesa. Mas não se trata de um caso isolado.

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Ilha_do_Pico

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Nos últimos dois anos surgiram a público notícias de achados arqueológicos nos Açores datados de épocas supostamente anteriores à chegada dos portugueses. Este achados são polémicos mas é possível dizer que, até hoje, ninguém conseguiu demonstrar a existência de qualquer ocupação humana anterior à colonização portuguesa – não confundir com a discussão, bastante mais interessante, acerca do eventual conhecimento da existência dos Açores antes do século XV, que não implica povoamento. Na verdade, a polémica advém essencialmente de uma abordagem pseudo-científica e sensacionalista aos vestígios em questão que foi publicamente denunciada por diversos arqueólogos.

Centremo-nos nos dois casos mais recentes.

1. Em 2011 noticiava-se a descoberta nos sítios de Monte Brasil e Espigão, na ilha Terceira, de estruturas funerárias de tradição mediterrânica, de tipo hipogeu, que deveriam testemunhar uma presença cartaginesa nos Açores [1][2][3].

Estas teriam sido identificadas e interpretadas por um arqueólogo da APIA (Associação Portuguesa de Investigação Arqueológica). Este considerava necessário encontrar apoios (leia-se, apoios financeiros) para averiguar esta hipótese mas, desde já, apesar da ausência de um estudo aprofundado das estruturas que confirmasse a sua interpretação, afirmava que a descoberta iria ser apresentada em congressos mundiais da especialidade. Nos jornais este facto parece funcionar como um reforço da suposta credibilidade da interpretação proposta.

As referidas estruturas, porém, eram conhecidas do público e da comunidade científica. Simplesmente tinham sido interpretadas de outra forma. A alegação de que se tratavam de hipogeus cartagineses baseava-se unicamente em paralelismos formais, não apresentava qualquer sustentabilidade artefactual. Esses paralelismos estruturais foram questionados pela generalidade da comunidade científica e outras hipóteses envolvendo cronologias bem mais recentes foram apresentadas. Ou seja, os paralelismos não foram tidos como credíveis. O parecer escrito pela arqueóloga Ana Margarida Arruda a pedido do ICOMOS-Portugal, entidade contactada pela Direcção Regional da Cultura, não só fornece uma interpretação menos fantasiosa como expõe, de forma racional, o absurdo das alegações extraordinárias em questão. Noutros meios públicos, nomeadamente na archport foram questionadas a idoneidade e as eventuais intenções dos autores da descoberta.

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2. De há duas semanas para cá, voltou-se a falar de presenças anteriores aos portugueses nos Açores, agora no âmbito da publicação de uma obra por parte dos mesmos arqueólogos responsáveis pelas descobertas dos hipogeus. Desta feita, são reinterpretados os maroiços da ilha do Pico. Para quem não sabe, maroiços (ou moroiços) são estruturas de pedras que podem assumir variadas formas e que resultam da limpeza da superfície de forma a obter área para cultivo. Basta uma caminhada pelos abundantes percursos pedestres da Serra dos Candeeiros para observar este tipo de estruturas, ainda que sem a monumentalidade e forma das da ilha do Pico. Esta últimas são reinterpretadas pelos arqueólogos da APIA como “pirâmides” com corredores, câmaras e portas:

Encontramos estruturas proto-históricas semelhantes no norte de África e noutras culturas aborígenes como a guanche, nas Ilhas Canárias. Mas ainda é muito cedo para dizermos exactamente o que são e quando foram construídas, precisamos de estudar mais os materiais e de fazer datações precisas [4].

Mais uma vez, é muito cedo para dizer o que são e quando foram construídas, ou seja, para dizer o que quer que seja acerca delas, mas não só se adianta de imediato que são anteriores à chegada dos portugueses como até se publica um livro sobre o assunto!

No Expresso conseguimos ler um pouco mais acerca do assunto e percebemos que existem argumentos da arqueoastronomia que o próprio arqueólogo acaba por admitir serem falíveis. Percebemos também que as estruturas foram visitadas por um arqueólogo da Universidade do Texas que diz que “as estruturas do Pico são muito perfeitas, implicam uma enorme quantidade de trabalho que não se justifica apenas pelas necessidades da actividade agrícola”. Soa um pouco a argumento de autoridade (o recurso a especialista de universidade estrangeira) que funciona no sentido inverso no meio científico pois este é apresentado como pertencente “à corrente académica que defende a existência de contactos regulares entre as antigas civilizações do Mediterrâneo e da América”.

Como referem a arqueóloga e o historiador contactados pelo Público para o contraditório – parabéns ao Público por o ter feito, ao contrário do Expresso – esta hipótese não tem em conta as imensas fontes documentais acerca do povoamento dos Açores e nem sequer contraria o facto de se saber para o que eram usadas muitas das estruturas em questão, como o próprio arqueólogo da APIA admite. Enfim, mais do que estarmos no campo das hipóteses, continuamos, tal como no caso dos hipogeus, no campo da fantasia. Tal como mencionou Ana Arruda, no caso dos hipogeus, mas válido também para estas pirâmides, fala-se de estruturas funerárias que, pela sua magnitude pressupõem a existência de comunidades de considerável dimensão, bem estabelecidas naquele território. Assim sendo, além destes espaços dos mortos, onde estão os espaços dos vivos, os vestígios artefactuais necessariamente abundantes da presença de tão grande comunidade?

Estes dois casos espelham uma forma pouco séria, sensacionalista e nada científica de abordar o estudo do passado que pouco dignificam a arqueologia portuguesa e que somente contribuem para o esbanjar de importantes recursos financeiros, tão escassos nos dias de hoje, em especial na área da ciência e da cultura.

Tenho quase a certeza que haverá novos capítulos acerca deste assunto. Enfim, só me surpreendo de ainda não terem colocado a hipótese de as estruturas terem sido construídas por pequenos homens verdes vindos de Marte ou de outra galáxia longínqua. Seria certamente bastante mais fascinante e não confundiria os leitores da nossa imprensa. Nestes casos, quanto mais absurdo, melhor, para não se confundir com a realidade. Vamos passar a palavra: foram os marcianos que primeiro povoaram os Açores. Construíram primeiro as pirâmides da Bósnia, depois as do Egipto e logo de seguida as dos Açores.

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Referências:

[1] Descoberta de ‘templos’ gera polémica nos Açores

[2] Descobertos nos Açores prováveis templos dedicados a deusa do século IV a.C

[3] Achados arqueológicos nos Açores são “sensacionalismo à Indiana Jones”

[4] Será que as “pirâmides” da vinha do Pico já lá estavam quando os portugueses chegaram?

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9 Comments

  1. Não vejo problema nenhum em se ser céptico, vejo problemas quando se é parcial.
    Há coisas muito mal explicadas na comunicação social e juízos precipitados. Toda esta polémica em torno de hipóteses, que uns afirmam já ser teoria, vai magoar alguém e com efeitos nefastos a vários níveis, entre os quais a perda de património importante actual descoberto e futuro (hipoteticamente a ser descoberto nos Açores).
    Em 2011 falava-se de grutas escavadas na rocha (Hipogeus) no Monte Brasil nos Açores. Gostaria de saber, se tal for possível, a quantos hipogeus e grutas se estão a referir? Sabem quantos são? Sabem como foram construídos e que instrumentos foram usados para a sua construção? Há documentos escritos, que não relatos orais que explicam a sua função?
    Quanto ao Espigão sabem quantas “grutas” se assim as quiserem chamar existem? Quantas pias escavadas sobre precipícios existem? Quais as suas formas? Sabem qual a área com gravuras nas rochas existem? Sabem se essas gravuras são fósseis ou não (fizeram algum estudo geológico)? Sabem se as fossetes que existem em centenas de rochas são de erosão (fizeram algum estudo geológico)?
    Sabem o que é um maroiço? Sabem quantos maroiços existem no Pico e quantos não o são?
    Tendo estado directa e indirectamente envolvido nalguns desses “achado extra-terrestres”, custa-me ver que uma comunidade de profissionais como a vossa trate as questões com tanta opinião e tão pouco conhecimento da realidade. Não creio que consigam valer as vossas ideias com chacota e descrédito.
    Não foi só um arqueólogo estrangeiro que se pronunciou sobre isso, foram vários.
    Excluindo a comunicação da Professora Ana Margarida Arruda, assistiram a outras? Já foram apresentadas pelo menos três em encontros internacionais com presença de arqueólogos.
    Conhecem as opiniões de outros arqueólogos que estiveram no local, com excepção do funcionário da DRC e da Professora Ana Margarida Arruda?.
    Cumprimentos
    Félix Rodrigues

    1. Ainda bem que não vê problema em ser céptico, porque, de facto, não existe problema algum. Na verdade, as imensas perguntas que coloca demonstram exactamente uma louvável propensão para o cepticismo, embora com umas falhas que devo assinalar.
      Creio que coloca essas perguntas às pessoas erradas. Nos meios escolhidos para divulgar as grandes descobertas ao público português são escassas as informações da natureza que você solicita. Por isso mesmo, o modelo dessa divulgação justifica uma parte da crítica que é feita no post.
      Diz que “uns afirmam já ser teoria” o que na verdade é só uma hipótese, mas um dos responsáveis pela redescoberta dos hipogeus e pela reinterpretação dos maroiços não hesitou em afirmar à comunicação social que estes são anteriores à chegada dos portugueses. Se é assim que ele formula hipóteses, talvez seja melhor equacionar a sua escolha de palavras, pois parece-me que, para ele, esta afirmação vai além da colocação de um hipótese.
      Afirma ter estado directamente envolvido nalguns dos achados. Eu não. Por isso, mesmo não reajo às notícias das descobertas com o mesmo sentimento que você reagiu ao post. Isso permite-me afirmar que, neste assunto, sou menos “parcial” (a palavra é sua) do que você, embora tenha menos dados.
      Em relação aos arqueólogos estrangeiros que se pronunciaram, creio que você não percebeu a crítica implícita no post, aliás, crítica comum a vários posts deste blogue. Na verdade, a menção ao arqueólogo estrangeiro, assim como às comunicações efectuadas em congressos internacionais, são meros argumentos de autoridade, que funcionam neste país pouco habituado à ciência, que valoriza tudo o que vem de fora. Não interessa se estavam presentes arqueólogos nos encontros internacionais que menciona. Interessa sim, perceber se os dados existentes são suficientes para convencer a comunidade científica. Isso não se faz em congressos internacionais mas sim em revistas da especialidade, de circulação internacional, com revisão por pares.
      Além da Professora Ana Arruda, outros arqueólogos manifestaram publicamente a sua visão sobre o património em questão, como certamente saberá, visto estar ligado às redescobertas em questão. Alguns preferiram usar os mesmos meios de divulgação que difundiram essa teorias – sim, teorias – ao país. Viu-se isso no jornal Público da semana passada, onde foi publicado um comentário de Alexandre Monteiro. Outros escolheram outros meios comuns na arqueologia portuguesa, como mailing lists e blogues, em especial aquando das primeiras descobertas. Talvez depois de publicarem no tipo de revistas que mencionei acima comecem a surgir reacções nos meios científicos adequados.

      Cumprimentos

      João Tereso

    2. Caro Félix Rodrigues, quais foram os arqueólogos estrangeiros que se pronunciaram sobre este assunto? E onde está a declaração e/ou relatório deles? Obrigado.

    1. Como dizia Sagan, “Extraordinary claims require extraordinary evidence”. Ficamos então a aguardar as publicações em revistas internacionais, da especialidade, com revisão pelos pares.

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