Acupunctura e o relatório da OMS

O relatório sobre Acupunctura da Organização Mundial de Saúde é frequentemente usado para validar a eficácia da terapia. Mas devemos confiar no nome da OMS sem sentido crítico?

A propósito da entrevista a David Marçal na Sábado, gerou-se uma pequena discussão na página da COMCEPT no Facebook. O desagrado perante as afirmações de Marçal sobre a acupunctura, levou a que alguém trouxesse à discussão um relatório da OMS como fonte de autoridade sobre a validade da acupunctura como terapia. 

Imediatamente a seguir, um leitor enviou-nos um email a dar-nos conta que os serviços de saúde do Instituto Superior Técnico “contam com uma nova valência: Acupuntura”

Para justificar a opção, indicam que a “OMS (Organização Mundial de Saúde) reconhece os benefícios desta medicina tradicional chinesa como complemento à medicina convencional, nomeadamente em situações de ansiedade, alergias, enxaquecas, depressão, entre outras.”

De todas as terapias não convencionais, a acupunctura é aquela que reúne mais adesão e em geral, até entre os cépticos há muitos que acham que a validade desta terapia é insuspeita. Geralmente, os argumentos em torno dos alegados benefícios e eficácia à volta da acupunctura centram-se na sua antiguidade e no facto de ser utilizada por médicos “convencionais”; muitos contam a sua experiência pessoal e frequentemente essas experiências passaram pela electro-acupunctura – que deveria ser analisada em separado. 

O argumento da autoridade da OMS, sem qualquer sentido crítico, não é novidade. Os homeopatas também recorrem frequentemente ao reconhecimento da Homeopatia pela organização para justificar que a terapia funciona. 

Mas o que diz exactamente este relatório da OMS? É a prova final que nós cépticos estamos errados e que deveríamos confiar cegamente em qualquer pessoa armada de agulhas?

© Kyle Hunter (= original uploader Kphunter at en.wikipedia)
© Kyle Hunter (= original uploader Kphunter at en.wikipedia)

O relatório, intitulado Acupuncture: Review and Analysis of Reports on Controlled Clinical Trials foi publicado em 2002 e os dados que avalia reportam até 1999. 

Os objectivos do relatório são claros logo nas primeiras páginas. [pag.2] O relatório fornece uma revisão dos estudos clínicos com vista ao fortalecimento e promoção do uso apropriado da acupunctura nos sistemas de saúde no mundo. Não se propõe a analisar objectivamente os resultados desses estudos clínicos e nada no relatório indica que seguiu os processos normais de revisão pelos pares. 

O termo acupunctura é usado num sentido amplo, não se fazendo qualquer distinção, por exemplo, entre acupunctura (a inserção de agulhas filiformes na pele) e electro-acupunctura. É aliás uma panóplia de várias técnicas: moxibustão, acupunctura a laser, auriculoterapia, etc.  [pag. 3]

Esta amalgama é algo bastante frequente nos estudos de acupunctura e que são por isso seriamente criticados por se misturarem uma quantidade de técnicas. O caso mais flagrante é a electro-acupunctura que possui alguma plausibilidade, sendo comparável à TENS (estímulo eléctrico dos nervos), mas que é sempre definida como a tal terapia milenar e holística.

No relatório faz-se a alusão às dificuldades de avaliar devidamente os efeitos da acupunctura recorrendo a “falsa acupunctura” ou “acupunctura-placebo.” Como se trata de aplicar agulhas na pele, é complicado encontrar uma solução que crie na pessoa a ilusão da aplicação da agulha. Uma das possibilidades é inserir as agulhas em locais não considerados pontos de acupunctura, ou então, inserir agulha superficialmente.

Foram essas dificuldades que levaram um grupo de investigadores, já em 2009, a desenvolver uma agulha retrátil que cria a ilusão de inserção sem de facto penetrar na pele. Esta agulha foi criada especialmente para ser utilizada nos estudos clínicos e avaliar até que ponto o efeito da acupunctura é efeito terapêutico ou apenas resultante de todo o ritual que envolve a penetração das agulhas na pele. Obviamente, os estudos feitos com este tipo de placebo não estão contemplados no relatório, já que este foi publicado antes do seu desenvolvimento. [1]

Qualquer uma destas técnicas levanta problemas porque a pessoa que está a aplicar a agulha sabe sempre que está a usar “falsa acupunctura”.

O relatório da OMS, é, no entanto, explícito a indicar que o uso deste tipo de estudos clínicos de eficácia não é bem recebido na China, porque tanto os pacientes estão bem cientes do que é acupunctura e porque os acunpunctores tão de tal maneira convencidos da sua eficácia que consideram que uma avaliação deste tipo não é ética:  

Various “sham” or “placebo” acupuncture procedures have been designed, but they are not easy to perform in countries such as China where acupuncture is widely used. In these countries, most patients know a great deal about acupuncture, including the special sensation that should be felt after insertion or during manipulation of the needle. Moreover, acupuncturists consider these procedures unethical because they are already convinced that acupuncture is effective. [pags. 3/4]

Quais foram os estudos utilizados para avaliar a eficácia da acupunctura?

  • Estudos aleatórios (a maioria com “acupuntura falsa” ou “terapia convencional” como controlo com um número adequado de pacientes observado. 
  • Estudos não aleatórios (comparação de grupos) com um número adequado de pacientes observados e condições comparadas antes do tratamento. 

Numa revisão sistemática, por exemplo, procura-se sempre recorrer aos melhores estudos e com o mais alto nível de rigor. O uso de grupos não aleatórios, permite que haja uma selecção consciente ou inconsciente das pessoas que melhor possam responder a um determinado tratamento. É uma técnica condenável nos estudos clínicos feitos pela Indústria farmacêutica, onde um medicamento é dado a um grupo com melhores condições socio-económicas, com menos problemas de saúde e mais probabilidade de recuperação. 

Neste relatório da OMS os autores indicam que a acupunctura falsa – ou seja, aplicada em pontos que não os correctos só pode indicar que aqueles pontos não são os correctos. E acrescentam que os estudos com recurso a “acupunctura-placebo” cujos resultados foram positivos, ou seja, em que a acupunctura verdadeira é superior à falsa, provam que a acupunctura é eficaz. Os resultados negativos, onde não existem diferença significativa entre a acupunctura verdadeira e acupunctura-placebo, não podem ser tomados como negação da eficácia da acupuntura. Logo, esses estudos não foram incluídos neste relatório:

(..) Positive results from such trials, which revealed that genuine acupuncture is superior to sham acupuncture with statistical significance, provide evidence showing the effectiveness of acupuncture treatment. On the other hand, negative results from such trials, in which both the genuine and sham acupuncture showed considerable therapeutic effects with no significant difference between them, can hardly be taken as evidence negating the effectiveness of acupuncture. (…) Therefore, these reports are generally not included in this review. [pag.7]

A não publicação de todos os resultados é o grande problema da medicina actual. A Indústria farmacêutica faz os possíveis para esconder resultados que são menos favoráveis aos seus medicamentos. Aqui, no relatório opta-se por simplesmente por dizer taxativamente que os resultados negativos não contribuem em nada para nos informar sobre a eficácia do tratamento, logo apenas os resultados favoráveis à acupunctura são aceites. Significa que este relatório, tal como indicado nos objectivos, não é uma análise objectiva, é simplesmente propaganda para promoção do uso da acupunctura. 

Os estudos analisados, numa grande maioria, foram executados sem recurso a grupo de controle com placebo e os resultados negativos foram eliminados da análise. Então a menção sucessiva de provas da eficácia da acupunctura ao longo de todo o relatório é o resultado de quê? No final do relatório encontramos uma lista resumindo os estudos que foram usados para declarar a eficácia da acupunctura para várias condições: São numa grande maioria comparações entre grupos que ou receberam “tratamento convencional”, por vezes sem especificação desse tratamento ou não receberam qualquer tratamento.

A grande maioria dos estudos que serviram de base para a avaliação da OMS têm origem na China, onde existe claramente pressão cultural para publicar estudos favoráveis à prática. Esta publicação constante de estudos positivos não é exclusiva do Oriente, mas deveria ser tomada em conta.[2]

Continuando na linha de promoção da acupunctura, o relatório vai enumerando as condições clínicas para as quais a acupunctura é benéfica segundo os autores [pág. 7]:

  1. Doenças, sintomas ou condições para as quais foi provado que a acupunctura é eficaz
  2. Doenças, sintomas ou condições para as quais foram encontrados efeitos terapêutico mas que necessitam de mais avaliação.
  3. Doenças, sintomas ou condições para as quais existem apenas estudos clínicos individuais indicando efeitos terapêuticos, mas para os quais poder-se-á usar a acupunctura porque tratamentos ou terapias convencionais são difíceis.
  4. Doenças, sintomas ou condições para as quais a acupunctura pode ser usada desde que o praticante possua conhecimento médico moderno e equipamento de monitorização adequado.

Tendo em conta que não sabemos, na verdade, quais as doenças, sintomas ou condições para as quais a acupunctura foi provada eficaz – o que se nota é a total ausência, por exemplo, das condições para as quais a acupunctura não demonstrou ser eficaz. E embora haja menção das limitações da acupunctura, nunca se enumera as condições para as quais ela não é recomendada.

Igualmente ausente do relatório, o que não é surpreendente, já que o relatório é um texto de promoção da acupunctura, são os riscos inerentes à prática.[3] Uma prática igualmente condenável da Indústria farmacêutica.

E curiosamente, existe um estudo publicado em 2010 pela Organização Mundial de Saúde que nos elucida sobre os riscos associados à acupunctura apenas na China. [4] Esses riscos incluem colapso do pulmão, tamponamento cardíaco, infecções, hemorragias, lesões na coluna vertebral entre outros. Embora em número inferior aos riscos com outros tratamentos, afirmar que não existem riscos associados à acupunctura como na publicidade em baixo, é incorrecto.

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Anúncio a uma clínica que promove a acupunctura como uma panaceia sem quaisquer riscos

Não deixa de ser surpreendente que quando alguém ousa criticar uma terapêutica não convencional, há sempre uma voz que se apressa em mencionar os males da Indústria Farmacêutica. Não que isso seja um argumento por si só. Como o Ben Goldacre diz, “Lá porque existem problemas com a engenharia dos aviões isto não significa que os tapetes voadores realmente voem”. Gostava, no entanto, de ver alguma consistência nas críticas. Se se critica a Indústria Farmacêutica por esconder resultados negativos ou manipular dados, também se deve criticar os proponentes destas terapias quando obviamente fazem o mesmo.

 

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1 Developing and validating a sham acupuncture needle. 

2 Do certain countries produce only positive results? A systematic review of controlled trials.

Acupuncture: does it alleviate pain and are there serious risks? A review of reviews.

Acupuncture-related adverse events: a systematic review of the Chinese literature

.

3 Comments

  1. Parabenizo o autor pela crítica e revisão inteligentes do relatório da OMS.
    Observo que em pesquisar atuais são excluídos pacientes que já foram submetidos à acupuntura, pois conhecem a diferença entre o sham com agulha retrátil e a acupuntura verdadeira.
    Esta terapia sujeita-se a trazer malefício principalmente se não trouxer o benefício esperado, ou se substituir uma terapia tradicional que já seja mais embasada. Ou seja, deve ser indicada como método complementar/auxiliar às outras terapias de modo geral. Em boas mãos, não deve trazer prejuízo do ponto de vista de procedimento.
    Há no Brasil, uma linha de pesquisa que se chama acupuntura Neurofuncional, algo na linha dos franceses, mas com resultados interessantes. Por ora, apenas.

    1. Caro David

      É muito complicado fazer um ensaio verdadeiramente cego – quem está a inserir as agulhas sabe sempre se é ou não a agulha retráctil ou não, sabe se está a inserir no supostos pontos de acupuntura ou não. Se as pessoas sabem distinguir o que é acupuntura “verdadeira” ou “falsa” – o resultado depende sempre das suas expectativas. Por isso, é muito dúbio falar de benefícios quando não sabemos se as pessoas estão a reagir apenas ao ritual associado à terapia.

      Neste momento, não podemos falar de verdadeiros benefícios. Os possíveis benefícios da acupuntura podem ser aqueles que são associados, por exemplo, aquilo que os ingleses chamam “bed-side manner” ou seja, a atenção e gentileza dada pelo médico ao doente pode dar resultados muito positivos, mesmo não havendo um efeito terapêutico verdadeiro.

      Espero que quando fala em “boas mãos” que se refira que estas devem estar sempre protegidas por luvas. Um dos riscos associados à acupuntura reside mesmo nas infecções.

      Cumprimentos

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