O jornal Público noticiou na quinta-feira o caso de um médico internado compulsivamente “por acreditar que pode curar diabetes e cancro”. O médico tinha consultório no Algarve, local onde praticava clínica geral e medicina alternativa utilizando “a força que aprendeu com Deus”. Aos psiquiatras que avaliaram a sua saúde mental, terá confessado estar convencido de que viria a receber o prémio Nobel pelas “curas” que desenvolveu. Administrava, contudo, tratamentos perigosos e sem qualquer fundamento científico. Defendia, por exemplo, que era capaz de curar a diabetes em apenas dez dias com doses maciças de insulina. Alegadamente, sofrerá de uma “perturbação paranóide de personalidade” e “carácter megalómano”.
Paranóia e delírios de grandeza são características com as quais os cépticos se deparam frequentemente quando as terapias não-convencionais são o assunto. Desde alegações de conspirações da comunidade médico-científica contra determinada prática alternativa, até às lamentações de génios incompreendidos que, após a “descoberta” de uma qualquer panaceia, se sentem extremamente melindrados pelo cepticismo alheio.
Este caso levanta por isso uma série de questões interessantes. Porque se o “perigo para si próprio” até pode ser uma justificação para privar este médico do direito à liberdade, outros argumentos há que são mais difíceis de entender. Nomeadamente, o argumento de que ele constitui “um risco inaceitável para os pacientes” que sejam “enganados pelo exercício dos seus poderes místicos”. E se, à primeira vista, parece difícil encontrar uma falha em tal argumento, vejamos então as diferenças entre este caso e a forma como outros médicos e terapeutas são tratados pela Ordem dos Médicos, os legisladores e a sociedade em geral:
- Qual é a diferença entre este médico e um terapeuta que defenda ser capaz de diagnosticar doenças graves pela íris e de curar o cancro com raízes? O risco para pacientes com doenças graves? Não. Mas o segundo tem direito a ser promovido no telejornal com toda a seriedade;
- Qual é a diferença entre este médico e um terapeuta que defenda que o espiritismo é uma ciência e que deve ser incluído na prática médica? A cédula profissional de médico? Também não. De facto, existem médicos psiquiatras que fazem parte de uma associação de médicos espíritas que defende precisamente isso;
- Qual é a diferença entre este médico e um terapeuta que defenda que consegue tratar várias doenças manipulando a coluna vertebral? A potencial perigosidade do tratamento face aos dúbios resultados? Não parece ser. E do médico, pelo menos, ainda não se conhecem queixosos;
- Qual é a diferença entre este médico e um terapeuta que defenda desinformação anti-vacinação? A promoção de ideias sem fundamento científico? Um redondo não. Mas o último é convidado da RTP1 e da Ciência Viva do Algarve;
- Qual é a diferença entre este médico e um terapeuta que defenda que consegue tratar um sem número de doenças com limpezas intestinais? A falta de regulamentação das práticas em questão? Claramente, não. Basta ter um estômago forte para o negócio;
- Qual é a diferença entre este médico e um terapeuta que defenda que a água se lembra de remédios mas não da sua passagem pelo esgoto? A plausibilidade do tratamento? Talvez… A insulina é, pelo menos em princípio, um tratamento bem mais plausível do que um remédio diluído até à não existência. No entanto, temos uma associação de médicos homeopatas e cursos “avançados” de homeopatia na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.
Bem vistas as coisas, a diferença de tratamento parece residir sobretudo na popularidade das práticas em questão, e não na perigosidade ou credibilidade científica das mesmas. A defesa de crenças que estão em conflito com a realidade também pouco terá a ver, já que isso não parece levantar dúvidas sobre a saúde mental de outros terapeutas. Pelo contrário, alguns viram mesmo essas crenças validadas pela Lei. Desta forma só se pode concluir que o internamento compulsivo deste médico é um acto de tremenda parcialidade e injustiça.
One Comment