Suplementos alimentares – regresso ao País das Maravilhas

O regresso ao tema dos suplementos alimentares milagrosos. O que mudou desde 2013? Para a vida dos consumidores, muito pouco.

Em 2013 escrevi sobre a legislação portuguesa e comunitária que supostamente deveria proteger os consumidores de produtos milagrosos que, através de alegações pseudocientíficas ou até sobrenaturais, prometem prevenir e tratar um sem número de doenças. Devido à legislação permissiva e fiscalização ineficiente, identifiquei os suplementos alimentares como uma espécie de “via verde” para a entrada no mercado de muitos desses produtos milagrosos. Um autêntico negócio da China do qual até a indústria farmacêutica quer um pedaço.

O que mudou deste então? Para a vida dos consumidores, muito pouco. Apesar de as alegações de saúde mais descaradas e mirabolantes terem diminuído, isso não significa que o mesmo possa ser dito da presença de suplementos milagrosos no mercado. Pelo contrário, as empresas tornaram-se simplesmente melhores a contornar a lei. Veja-se como é introduzido o novo Decreto-Lei n.º 118/2015 que veio alterar a legislação anterior sobre suplementos alimentares:

A experiência recente tem demonstrado a crescente sofisticação das práticas comerciais relativas à comercialização de produtos notificados como suplementos alimentares. Na publicitação e comercialização destes produtos são feitas frequentemente alegações nutricionais e de saúde.

O mesmo Decreto-Lei dita que quem pretende lançar um suplemento alimentar no mercado tem agora de enviar uma notificação à Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), quando anteriormente tinha de enviar essa notificação ao Gabinete de Planeamento e Políticas (GPP). Mas continuam a não ser obrigatórios ensaios clínicos que comprovem a eficácia e segurança dos suplementos. O Decreto-Lei fala apenas na possibilidade do director-geral da DGAV solicitar “estudos de qualidade e segurança” caso entenda que são necessários.

Temos também o novo Decreto-Lei n.º 238/2015 que pretende impor os princípios da “transparência, fidedignidade e licitude; objetividade; [e] rigor científico” na publicidade sobre saúde. No entanto, é difícil partilhar do entusiasmo com que este novo Decreto-Lei foi recebido – afinal, basta lembrar que a legislação anterior, tanto sobre produtos milagrosos no geral, como sobre a publicidade a suplementos alimentares, propunha-se a alcançar os mesmos objectivos[ref]A isto junta-se a contradição da legislação que legaliza terapias sem comprovação científica, como é o caso da homeopatia, ao mesmo tempo que diz que os praticantes devem “ler criticamente a literatura científica e incorporar a informação na sua prática”.[/ref].

Analisemos então a situação actual com mais detalhe.

A receita do desastre

Descarte a fiscalização preventiva

Estou sim, é da DGAV. Vão começar a vender o suplemento “Cura Tudo Rapid”? Ok, mas portem-se bem hein! (Crédito da imagem: highwaysengland)
Estou sim, é da DGAV. Vão começar a vender o suplemento “Cura Tudo Rapid”? Ok, mas portem-se bem hein! (Crédito da imagem: highwaysengland)

Ao contrário do que acontece com os medicamentos, não é obrigatória qualquer avaliação dos suplementos alimentares antes da entrada no mercado: nem de eficácia, nem de segurança, nem se contêm as substâncias que alegam, nem se deveriam antes ser classificados como medicamentos e sujeitos a regras mais apertadas.

A única medida verdadeiramente precaucional que existe é uma lista de alegações para nutrientes, substâncias e alimentos relativamente à sua função no organismo ou à redução do risco de doença, uma lista que é mantida pela Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA). Essas alegações foram previamente submetidas pelas empresas do sector e avaliadas segundo as provas científicas existentes. Em teoria, as empresas estão proibidas de fazer alegações que tenham sido chumbadas ou que ainda não tenham sido avaliadas pela EFSA. Na prática, até a fiscalização desta medida “preventiva”, se chegar a acontecer, pode ser apenas após a entrada no mercado.

Como já vimos, a nova legislação dos suplementos alimentares contempla pelo menos a possibilidade de se solicitar estudos de qualidade e segurança, mas a aplicação desta medida é deixada ao critério da DGAV que não parece estar muito empenhada em fazer uso dela. Num aviso datado de 20 de Janeiro de 2016, a DGAV diz que “tratando-se de géneros alimentícios, a notificação não envolve a apresentação de ensaios de segurança” e que “a responsabilidade pelo cumprimento dos requisitos legais dos suplementos alimentares, designadamente no âmbito da comercialização, é do operador económico”.

Ou seja, tudo se baseia numa espécie de “sistema de honra” em que as empresas “prometem” que se portam bem e o Estado se demite de qualquer responsabilidade caso algo venha a correr mal. Esta é uma lógica que impera não só em Portugal mas um pouco por todo o mundo. A situação nos EUA e na Austrália não é muito diferente e a razão prende-se sobretudo com o próximo ingrediente da nossa receita.

Adicione falácia natural a gosto

Um pequeno almoço à base de géneros alimentícios naturais (Crédito da imagem: Carsten Schertzer)
Um pequeno almoço à base de géneros alimentícios naturais (Crédito da imagem: Carsten Schertzer)

Os legisladores têm tendência para ver os chamados “produtos naturais” como inofensivos e acham por isso que não é necessária uma fiscalização preventiva e apertada. Isto é baseado na ideia comum, mas errada, de que estes produtos são incapazes de produzir efeitos negativos[ref]Será que vitaminas sintetizadas em biorreactores industriais continuam a ser consideradas naturais pelos padrões de quem procura este tipo de produtos?[/ref].

Os produtos naturais podem fazer mal dependendo da substância em causa, da dose, do estado de saúde e da interacção com medicamentos – algo que o Observatório de Interações Planta-Medicamento se tem dedicado a documentar e divulgar – mas descartar a fiscalização preventiva com base na falácia natural cria ainda outros problemas que raramente são tidos em conta:

Vai à batedeira com uma pitada de aplicação da lei

Este não parece ser o suplemento de que estamos à procura… (Crédito da imagem: dan.danowski)
Este não parece ser o suplemento de que estamos à procura… (Crédito da imagem: dan.danowski)

Segundo o jornal Público, a ASAE instaurou em 2014 uma centena de processos relacionados com irregularidades na rotulagem e registo, enquanto a acção da Direcção-Geral do Consumidor se ficou em cerca de cinquenta processos por alegações enganosas entre 2009 e 2014. Quanto à fiscalização da segurança, também em 2014, uma acção conjunta da ASAE e do Infarmed levou à remoção de vinte e sete suplementos alimentares do mercado por conterem substâncias perigosas para a saúde. Serão estes números satisfatórios?

Com uma entrada facilitada no mercado é apenas normal que a aplicação da lei seja difícil – quanto maior for o número de suplementos a fiscalizar, mais ineficiente será o trabalho dos reguladores que geralmente possuem recursos limitados. Em 2013 o Ministério da Agricultura e a DGAV, à semelhança do que acontece em outros países europeus, chegaram a colocar a hipótese de cobrar uma taxa até €500 pela entrada de suplementos alimentares no mercado, financiando assim os encargos financeiros “decorrentes da verificação de conformidade do cumprimento da lei”. Contudo, o projecto nunca chegou a avançar.

O resultado está à vista: basta ligar a televisão para constatar que boa parte dos blocos publicitários dos canais de sinal aberto são compostos por suplementos alimentares com alegações de saúde que pouco têm a ver com a manutenção de um regime alimentar saudável. Eles estão ainda na rádio, nos jornais, nas revistas, nas prateleiras dos supermercados e até nas vitrinas das farmácias. Entre outras coisas, eles garantem ajudar a emagrecer, rejuvenescer corpo e mente, acabar com as insónias, ter erecções sem ajuda médica, livrar-nos de toxinas misteriosas, dar boas notas a alunos e reforçar o sistema imunitário como se fosse o escudo da nave Enterprise. Só que na maioria dos casos as alegações são hoje feitas de forma dissimulada por forma a contornar a lei e dificultar a acção das autoridades. O que nos leva ao próximo passo da nossa receita.

Coloque no forno numa forma untada com marketing

É a refinada arte do “dizer sem afirmar” como explica David Marçal no livro Pseudociência:

Para contornar legislações que proíbem afirmações enganosas, os departamentos de marketing das empresas que comercializam produtos com ingredientes milagrosos, que alegadamente lhes conferem propriedades especiais, desenvolveram uma linguagem própria de «dito pelo não dito» […] Por vezes não é preciso dizer mesmo nada. Basta uma aura amarela à volta de uma figura humana e concluímos que o produto reforça o sistema imunitário.

Ou seja, não é necessário produzir alegações enganosas per se para enganar os consumidores. Laçam-se umas afirmações vagas sobre “bem-estar”, deixam-se algumas pistas no ar e os consumidores juntam os pontos sozinhos. Desta forma, os consumidores chegam à conclusão que a empresa pretende mas que se encontra proibida de transmitir de forma explícita. Como é que isto se faz? É mais ou menos da seguinte forma.

Giorgio A. Tsoukalos, especialista em extraterrestres e suplementos alimentares.
Giorgio A. Tsoukalos, especialista em extraterrestres e suplementos alimentares.

Um suplemento à base de cálcio alega que “o cálcio é necessário para a manutenção de ossos normais”, uma alegação que é autorizada pela EFSA. A empresa não alega que consegue curar a osteoporose ou acabar com as dores características de uma idade avançada, são os testemunhos pessoais de clientes que se encarregam disso no vídeo publicitário. A empresa também não alega que o suplemento possui a quantidade de cálcio necessária para obter efeitos benéficos ou que o cálcio é a única coisa necessária para a manutenção de ossos normais. Se o consumidor foi induzido em erro isso deve-se apenas à sua imaginação fértil!

Um suplemento de vitamina C alega que esta vitamina “contribui para o normal funcionamento do sistema imunitário”. Isto é verdade e perfeitamente legal. A empresa não alega que o produto consegue prevenir ou curar gripes, o consumidor é que chega a essa conclusão sozinho, sobretudo, se a alegação vier acompanhada de imagens onde quem toma o suplemento é protegido por um escudo gigante enquanto os outros figurantes ficam doentes[ref]Este é um truque que também é utilizado pela indústria farmacêutica em vários medicamentos “antigripais” que nada mais fazem do que aliviar os sintomas. Alguns chegam a incluir a vitamina C na composição para explorar a ideia amplamente disseminada, mas de comprovação científica modesta, de que esta vitamina é capaz de curar gripes e constipações.[/ref].

Um suplemento de nome “20 dias” supostamente ajuda a emagrecer. A legislação comunitária proíbe que suplementos alimentares façam “referência ao ritmo ou à quantificação da perda de peso”. Mas não há problema, tudo está em conformidade. A empresa não alega que o produto ajuda a emagrecer em 20 dias, esse é somente o nome do produto. É o consumidor que, mais uma vez, entende tudo mal.

Um suplemento com uma fruta tropical diz que ajuda a curar cancro, uma alegação sem comprovação científica que, após uma quantidade generosa de tempo, acaba por causar problemas junto das autoridades. Não há stress! Basta olhar para outros ingredientes presentes no produto, há sempre uma vitamina ou duas. Depois vai-se à lista da EFSA procurar alegações ligadas ao sistema imunitário e à divisão celular que possam ser feitas para essas vitaminas, mantendo, é claro, a fruta milagrosa em grandioso destaque na embalagem e publicidade. A empresa não tem culpa que as pessoas acreditem na desinformação que circula na Internet sobre essa fruta milagrosa. Nem tão pouco pode ser censurada por continuar a colher os louros de anos de publicidade não regulada antes das autoridades terem decidido actuar.

Escusado será dizer que qualquer semelhança entre estes produtos imaginários e a realidade não é mera coincidência.

Desfrute do bolo mas cuidado para não se queimar

Essencialmente, os ingredientes que contribuem para a existência de suplementos alimentares milagrosos, bem como do problema que isso representa para os direitos dos consumidores e de uma concorrência honesta e equitativa dentro da indústria, continuam, como vimos, praticamente iguais. Desta forma, a melhor defesa contra alegações enganosas continua a ser a informação e o pensamento crítico:

  • Desconfie sempre de promessas milagrosas. Pode consultar o nosso guia Banha da Cobra – Os Sinais” para saber ao que deve estar atento;
  • Seja crítico perante as alegações de saúde que encontra, até mesmo de suplementos à venda em farmácias. Consulte a lista de alegações autorizadas pela EFSA (site em inglês);
  • Os suplementos alimentares não são medicamentos. Não deve substituir tratamentos médicos e medicamentos por estes;
  • Tomar um suplemento que alegue que “o nutriente X é necessário para a manutenção da função vital Y” não se traduz em qualquer benefício de saúde a não ser que tenha deficiência desse nutriente;
  • Peça aconselhamento médico e não gaste dinheiro desnecessariamente. É possível que até já consuma os nutrientes de que precisa na sua alimentação. Alternativamente, pode alterar alguns dos seus hábitos alimentares;
  • Os suplementos alimentares não são completamente inócuos e podem até interferir com tratamentos médicos. Informe sempre o seu médico sobre os suplementos que consome.

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