Entrevista a uma homeopata

Entrevista polémica a uma homeopata.

A propósito do lançamento de um novo livro sobre homeopatia, a imprensa tem-se desdobrado em entrevistas à sua autora, uma homeopata, Cristina Pombo (entrevistas na Mood, no Sapo Lifestyle, no DN Life e na MAGG). É sobre esta entrevista, na MAGG, que nos vamos debruçar, por considerarmos que a autora do livro proferiu afirmações preocupantes e nefastas para a saúde dos cidadãos.

Comecemos por contextualizar que a homeopatia é uma terapia criada no século XVIII, que assenta no princípio de que o igual cura o igual e no princípio das diluições sucessivas, ou seja, de que quanto mais diluída estiver uma substância, mais pontente ela será. Por esta terapia contrariar o conhecimento acumulado que se tem da química e da investigação médica, incluindo falta de ensaios clínicos que a apoiem, é considerada pela comunidade médica e científica uma pseudociência. Por outras palavras, a homeopatia não funciona. (Mais sobre este tema, na nossa secção de recursos).

homeopatia

Fonte: Pixabay

 

Passemos à análise da entrevista:

– A narrativa da autora do livro, ao longo da entrevista, é a de que se deve deixar de dar medicamentos aos doentes, por terem químicos, substituindo-os por produtos homeopáticos. Assim, foi alimentando a ideia falaciosa de que os químicos são maus e os produtos homeopáticos (naturais) são bons. Como estamos fartos de explicar, esta dicotomia não faz sentido por três razões: tudo o que existe na natureza é químico (não há substâncias sem elementos químicos na sua constituição), porque há produtos naturais que são prejudiciais, ou até letais (cogumelos venenosos, cicuta, etc.) e porque, como já referimos, a homeopatia não funciona – por isso, não só não é benéfica como até pode ser prejudicial por afastar os doentes da medicina;

– a autora reforça a ideia anterior  referindo que, ao contrário dos medicamentos, os produtos homeopáticos não têm efeitos secundários. Na realidade, devido às diluições sucessivas, o princípio activo deixa de estar presente no preparado homeopático, portanto, geralmente, não tem efeitos primários (de actuação), quanto mais secundários. No entanto, por vezes até pode actuar no organismo sendo prejudicial, seja por erros de preparação (a diluição não ter sido suficiente) ou devido a outras substâncias utilizadas na preparação.  Lembramos que estes produtos não estão sujeitos ao mesmo tipo de regulamentação dos medicamentos;

– a autora defende a homeopatia como uma alternativa aos medicamentos (os “químicos”), mas como complementar à medicina. Segundo ela, a homeopatia pode ser utilizada em três situações: em situações de urgência (dores fortes de cabeça ou de dentes, dedos entalados, queimaduras ligeiras), doenças agudas e doenças crónicas. Ou seja, em quase todas as situações, mas se a homeopatia não resultar deverá recorrer-se aos cuidados médicos. Por outras palavras, primeiro gasta-se dinheiro no homeopata, mas se ficar na mesma ou piorar deverá procurar ajuda na medicina (aquela que funciona) – se não for tarde demais, pois os sintomas podem agravar-se ou, no pior dos casos, pode já não ter solução;

– a par do excesso de medicamentos, diz que também se recorre demasiado a antibióticos e vacinas sem necessidade. Se é verdade que o excesso de uso (ou a má utilização) de antibióticos tem levado ao surgimento de estirpes de bactérias resistentes, também é verdade que eles têm um efeito efectivo contra bactérias e são necessários em muitas situações, não devendo ser substituídos por produtos homeopáticos – não faz sentido substituir algo que funciona por outra coisa que não funciona;

– Cristina mostra-se crítica do excesso de medicação não só em adultos, mas também em crianças, em especial no que à ritalina diz respeito – medicamento utilizado em casos de Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção (PHDA). Este assunto tem estado na ordem do dia, a propósito de propostas políticas, recentemente apresentadas no Parlamento. Para um correcto esclarecimento sobre este tema, deixamos um fact check do Observador e um texto publicado no SciMed;

– faz afirmações abusivas como quando diz que os pensamentos negativos causam doenças, como o cancro. Não só não há evidências que sustentem esta afirmação, como coloca a culpa em pacientes que sofrem de doenças crónicas;

– diz que a homeopatia é eficaz a tratar doenças como otites, amigdalites, apendicites e pneumonias. Isto é gravíssimo, pois pessoas que sofram destes problemas necessitam de cuidados médicos. Apendicites e pneumonias, por exemplo, são situações graves que podem culminar em morte, se não forem devidamente tratadas – (em entrevista ao DN Life, chega mesmo a recomendar homeopatia para estadios iniciais de cancro!). Recomendar terapias homeopáticas para estes casos é uma atitude irresponsável;

– defende que a homeopatia não pode funcionar como um placebo, uma vez que as crianças curam-se, e elas não são susceptíveis ao “efeito placebo”. Este tema merece ser desenvolvido em textos posteriores devido à sua complexidade, mas, por ora, deixo aqui uma referência que demonstra que o “efeito placebo” é verificado em crianças e em animais;

– quando confrontada com a pergunta porque é que não há mais aceitação desta terapia, joga a cartada da conspiração, acusando o lobby da indústria farmacêutica de ter muito dinheiro a perder. Sobre esta resposta, reconheço que a indústria farmacêutica quer ganhar dinheiro, assim como qualquer outra indústria que se queira manter a operar. Mas, também como qualquer outra indústria, está regulada. Além do mais, também existe uma indústria homeopática que procura grandes lucros, com diversos laboratórios a movimentar centenas de milhões de euros. Ou seja, a acusação não faz muito sentido;

– diz que os tratamentos homeopáticos são mais baratos quando comparados com os tratamentos médicos. Depende. A medicina é cara mas por isso é que é comparticipada, em Portugal, pelo Estado, através do Serviço Nacional de Saúde, de modo a permitir um acesso universal à saúde. As consultas médicas, no serviço público, são baratas e acessíveis. Os medicamentos por vezes têm um preço por vezes elevado mas funcionam. Em oposição, as consultas homeopáticas são comparativamente caras (entre 70 a 80€) e os produtos homeopáticos também são caros, principalmente atendendo a que não têm efeito;

– atendendo a que na entrevista são mencionados o local do consultório e os preços aplicados, arriscamo-nos a dizer que parece tratar-se de uma publirreportagem sem estar devidamente indicado que o é;

– quando a jornalista pergunta se as pessoas podem fazer o tratamento em casa ou se precisam de um “especialista”, a autora defende que é importante o contacto com o “especialista”, por ser perigoso procurar por si o seu próprio tratamento – claro, não se vá colocar em risco o negócio da/o homeopata;

– segundo a jornalista, o livro dedica 40% do espaço a mostrar adeptos da homeopatia, alguns deles pessoas importantes. Ou seja, em vez de artigos científicos que comprovem a homeopatia, a autora dedicou-se a recolher testemunhos pessoas que confirmem que a terapia funciona. Isto é um exemplo de falácia de apelo à popularidade e à autoridade, uma vez que não é por muitas pessoas recorrerem a uma determinada terapia, ou que alguém conhecido a pratica, que isso serve de prova para a sua eficácia. Além do mais, testemunhos são uma fraca prova pois todos estamos sujeitos aos mais variados vieses. O que determina a eficácia de uma terapia ou tratamento são ensaios clínicos, investigação científica e uma análise de conjunto de artigos publicados em revistas científicas sujeitas a revisão por pares e ao escrutínio científico. Quando estes factores não existem para um determinado tratamento, recorre-se aos testemunhos individuais, uma manobra conhecida de marketing para dar uma ideia de aparente credibilidade.

Em jeito de conclusão, consideramos que foram feitas afirmações erróneas e recomendações médicas perigosas, que podem afastar os pacientes de tratamentos eficientes para abraçarem uma terapia que não tem sustentação científica, apesar da muita investigação feita. Muito nos espanta que essas afirmações tenham sido feitas por uma profissional com formação e experiência na indústria farmacêutica, que, por isso, tem o dever de saber que é incorrecta a dicotomia do natural (bom) vs químico (mau) e, igualmente, de saber que (e porquê) os produtos homeopáticos não funcionam.

3 Comments

  1. Dr, não tenho dúvida que os medicamentos homeopáticos funcionam no seguinte caso: Em caso de desidratação se beber três litros de qualquer medicamento homeopático, terá boas possibilidades de ter benefícios. Água pura, H2O

  2. Bom dia, fiz uma leitura “diagonal” ao seu artigo e fiquei com a sensação de que não referiu uma afirmação completamente irresponsável da entrevistada.
    Diz ela que
    “(…) há algum tempo, um grupo de pessoas tomaram não sei quantos quilos de grânulos de um medicamento e não lhes aconteceu nada. Pois claro, isso é o que se esperaria. (…) se der o medicamento errado o mais provável é não acontecer nada, porque não faz ressonância na pessoa.”

    Ou seja, a senhora afirma que eu posso tomar uma caixa inteira de uma medicamento qualquer. Se não sofrer da doença, o mais certo é que não me aconteça nada!

    Cumprimentos e continuação de bom trabalho.

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