O jejum intermitente cura doenças?

A autora de um livro sobre o jejum intermitente alega que esta prática cura doenças. Mas será mesmo assim? Fomos falar com uma nutricionista.

Alexandra Vasconcelos deu uma entrevista ao Público a propósito do lançamento do seu recente livro “O poder do jejum intermitente”. Nessa entrevista, alegou que o jejum cura doenças crónicas e até mesmo cancro. Estará ela correcta? Fomos falar com uma nutricionista para reunir mais informação a este respeito.

Quem é Alexandra Vasconcelos?

Alexandra Vasconcelos é licenciada em Ciências Farmacêuticas, tendo trabalhado durante 15 anos em Farmácia Comunitária como proprietária e directora técnica. Na sua opinião, a farmácia não poderia fornecer todas as soluções, o que a motivou a obter formação em “terapias complementares, naturais e biológicas”. Apresenta-se como “master em Medicina Integrativa e Humanista, pós-graduada em Nutrição Ecológica, master em Nutrição Ortomolecular, especializada em Nutrição e Saúde, Micronutrição e Neuronutrição e em Nutrição Celular Ativa, tem master em Homeopatia Unicista e Homeopsinetologia“. Actualmente, dirige as áreas das Terapias Não Complementares (TNC) numa clínica privada.

Para além do seu percurso pelas terapias alternativas, é autora de três livros: “O segredo para se manter jovem e saudável” (2017), “Jovem e saudável em 21 dias” (2019) e “O poder do jejum intermitente” (2020). O seu livro de 2019 foi analisado no website SciMed. Tem tido projecção mediática através de vários canais televisivos e imprensa escrita: RTP, SIC, TVI, Correio da Manhã, Activa e Porto Canal.

A entrevista

A propósito do lançamento do seu mais recente livro dedicado ao tema do jejum intermitente, a Alexandra Vasconcelos foi entrevistada pelo jornal Público onde fez alegações incorrectas sobre as vantagens do jejum para a saúde (a entrevista pode ser lida aqui). As suas afirmações foram tão exageradas que a jornalista chegou mesmo a perguntar se era mesmo assim como ela dizia.

Ao ler a entrevista, a COMCEPT entendeu que havia que desmontar aquelas alegações e passar informação correcta. Por essa razão, entrámos em contacto com a Helena Trigueiro, que é nutricionista e, ela sim, qualificada para falar de alimentação.

Alexandra afirma que o seu livro é baseado em artigos científicos. Isto até poderia ser um bom indicativo, mas não é suficiente. Por isso, antes de avançarmos, há que relembrar que os estudos sobre nutrição são muito diversos e, nalguns casos, complexos. Para elaborar ensaios controlados recorre-se a modelos de estudo, como microorganismos (leveduras, por exemplo) ou ratinhos. No entanto há que ter em mente que esses resultados nem sempre podem ser transponíveis directamente para humanos — apenas nos dão pistas. Estudos em humanos são complexos, entre outras razões porque, após dividir as pessoas em diferentes grupos, é difícil controlar se os participantes estão a seguir a dieta prescrita, por serem de curta duração e também porque, muitas vezes, as pessoas abandonam o estudo a meio, o que pode dar origem a grupos pouco representativos e, por conseguinte, influenciar erroneamente as conclusões. Por estes e outros motivos, não basta ler um estudo publicado em revistas científicas, é preciso escrutinar criticamente o design da experiência, a metodologia, o contexto, os modelos de estudo utilizados e outros factores — algo que um especialista está mais preparado para fazer.

Regressemos ao tema. Na entrevista dada ao Público, Alexandra Vasconcelos diz que o jejum reduz a inflamação, o stress e contribui para a perda de peso. Acrescenta que o jejum faz bem à saúde porque permite “viver sem doenças” e que isso beneficiaria o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Também afirma que o jejum cura doenças crónicas, como a diabetes, e recomenda esta prática a pacientes com cancro.

Apesar da alimentação ocidental ser muito calórica, o jejum não é a solução. Como nos recorda a nutricionista Helena Trigueiro, “os médicos e outros profissionais de saúde já alertam para os cuidados a ter com a nutrição e com o exercício físico, e isso não é de agora”. É a chamada medicina preventiva. Assim, esta autora apresenta o seu livro como solução para um problema que no SNS não existe, além de prometer algo impossível: “viver sem doenças”.

Quanto a recorrer ao jejum para emagrecer, a Helena Trigueiro recorda-nos também que a perda de peso está dependente do défice calórico (i.e. gastar mais calorias do que as ingeridas). Usar o jejum para a perda de peso pode não ser muito problemático, desde que acompanhado por profissionais de saúde e com a situação devidamente monitorizada. A nutricionista alerta ainda para o facto de um jejum moderado, individualizado e controlado por especialistas ser diferente do que foi promovido pela autora do livro: Alexandra Vasconcelos afirma que o jejum de 12 horas é insuficiente, que o jejum de 24 horas é fácil e que qualquer pessoa pode fazer jejum sozinha, mesmo quando doente, e sem necessidade de acompanhamento especializado, bastando para isso seguir as regras do livro. Isto sim, é perigoso. Helena Trigueiro explica que estas alegações podem levar ao desenvolvimento de doenças de comportamento alimentar, para além de isolamento social. Convém também recordar que o acto da alimentação não é apenas um um acto de sobrevivência, é também um comportamento social. Helena alerta-nos também para o facto de a prática de jejum prolongado e sem acompanhamento especializado poder resultar em acidentes de trabalho, de condução, ou hipoglicémia. “É um atentado à saúde das pessoas. É uma aberração”.

Quem ler a entrevista percebe que a jornalista estava bem preparada e que, apesar do tema ser a promoção de um livro, fez o contraditório às alegações da autora pelo menos em duas ocasiões. Uma das vezes é quando pergunta “Não é perigoso dizer que o jejum cura? Não é mais cauteloso dizer que “pode ajudar a melhorar” uma doença, em vez de dizer no livro que a pessoa “pode deixar” de ter diabetes, por exemplo?” A jornalista tem toda a razão em alertar para isto porque, de facto, a diabetes não se cura com jejum, assim como esta prática deveria ser desaconselhada a pacientes com essa doença. A outra vez é quando pergunta, logo a seguir: “Em relação ao cancro, devido à diversidade de cancros que existem, a sua localização no corpo e as fases em que pode estar, por que é que aconselha o jejum, quando os oncologistas aconselham que se coma?”. Mais uma vez, a jornalista toca em pontos-chave: há diferentes tipos de cancro, pelo que devem ser alvo de abordagens diferenciadas (consoante o órgão, estado de desenvolvimento, etc.); por outro lado, a recomendação de jejum aplicada a estes casos contraria a prática médica. Sobre este ponto, a nutricionista Helena Trigueiro é peremptória: “as guidelines dizem que os pacientes oncológicos devem estar correctamente nutridos e que a não-alimentação pode deteriorar o estado de saúde do doente”.

O apelo do livro

O tema deste livro é particularmente apelativo porque dirige-se a vários públicos-alvo: os que querem emagrecer, os que procuram uma alimentação e estilo de vida saudáveis, os doentes crónicos (diabetes e doenças auto-imunes) e pacientes oncológicos. Estes grupos têm dois pontos em comum: encontram-se numa situação de fragilidade e procuram respostas imediatas. Como a Helena nos explica: “doenças como cancro e diabetes são prevalentes na sociedade, o livro fala a essas pessoas, ainda para mais, apresentando soluções simples e directas para um tema que é bastante complexo” — e que não pode ser tratado com esta ligeireza.

Para além de alguns erros e meias-verdades, o livro também se apoia em falácias argumentativas. Uma delas é o do apelo à antiguidade, quando diz que o jejum é uma prática milenar — deduzindo-se que, por isso, não só é inócuo, como até é benéfico.

Outra falácia é do apelo ao natural, que surge de dois modos diferentes: primeiro, ao mencionar que é uma prática adaptada à nossa genética, sugerindo que já estamos biologicamente programados para isso; em segundo lugar, ao mencionar que a “agricultura industrial” veio retirar nutrientes aos alimentos, sendo a solução adoptar o jejum e suplementos. Quanto a isto, não é linear que os alimentos tenham perdido nutrientes e os suplementos são desnecessários, desde que tenhamos uma alimentação equilibrada e variada (o que não teremos, decerto, com recurso ao jejum sem acompanhamento profissional).

Depois há ainda a falácia do apelo à autoridade, quando menciona a existência de um prémio Nobel para validar a sua tese. Acontece que o prémio Nobel em questão, o japonês Yoshinori Ohsumi, apesar de ter estudado o processo e o mecanismo de autofagia, como a Alexandra Vasconcelos refere, a investigação foi realizada em leveduras e o cientista não fez qualquer alusão à prática do jejum. Pedro Carvalho, nutricionista e autor do livro “Os mitos que comemos”, explica isso num texto publicado também no jornal Público.

Conclusão

Neste texto apresentámos alguns dos erros do livro e procurámos corrigi-los. Este é o resultado de um problema que vimos a alertar: a de haver ainda poucos especialistas presentes no espaço público para esclarecer a população, levando a que esse espaço seja ocupado por terapeutas alternativos. A nutrição é uma disciplina académica que tem uma ciência de base, e para se ser nutricionista é necessário ter uma formação especializada — que não se aprende em cursos de terapias alternativas.

Por coincidência, a Ordem dos Nutricionistas lançou hoje um aviso a informar que a autora deste livro não é nutricionista e que o mesmo contém informação errónea. Se procura informação sobre nutrição e dietas e quer saber se determinado profissional é um(a) nutricionista qualificado(a), procure o nome no website da Ordem dos Nutricionistas.

3 Comments

  1. É impressionante a capacidade que esta gente tem para pintar o curriculo com nomes pomposos que nada significam. Tudo isto é uma mão cheia de nada.

  2. Parabéns por uma vez mais gritarem que “O Rei vai nu”. Mais uma vez lamentar a fraca qualidade jornalística principalmente do canal publico, que divulga qualquer patetice sem informação cuidada

  3. De facto, a miséria humana tem raiz na ignorância. Creio que os agentes da promoção da SAÚDE HUMANA, ancorados na devida formação científica, terão de ser mais activos na divulgação do conhecimento. E porque não se formam equipas multidisciplinares que assessorem aqueles que trabalham no terreno dos Cuidados Primários da Saúde?

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Procurar
Outros artigos
Votação para o Prémio Unicórnio Voador 2023
Comcept
Quando o marketing se apropria dos conceitos “Natural” e “Tecnológico”
João L. Monteiro
FORAM EXIBIDOS SERES EXTRATERRESTRES NO MÉXICO?
João L. Monteiro