Porque precisamos de método para saber se isto ou aquilo trata mesmo?

Porque precisamos na medicina de testes duplamente cegos, controlados com placebo, com muitos casos e aleatórios? Porque não serve evidência anedótica?

Porque precisamos de testes duplamente cegos, controlados com placebo, com muitos casos e aleatórios? Porque não serve evidência anedótica?

A versão curta.

1 – A maioria das doenças que sofremos durante a vida são auto limitantes. Isto é, passam sozinhas a maioria das vezes. Faça-se o que se fizer, elas acabam por desaparecer.

Por isso a experiência pessoal não conta. Mesmo que seja verdadeira e acreditemos nela. Pode não ter sido efeito do tratamento mas sim da natureza. A nossa tendência para partir logo para uma relação causa efeito é uma falácia. E por isso são precisos muitos casos e comparação com placebo. Para ver se houve diferença para os que não fizeram nada. É como o provérbio de “um mês a chá de limão cura a constipação”. Claro que cura. Mesmo que se não tomar vai passar na mesma.

2- A maioria das doenças que não passam sozinhas, as doenças crónicas, têm oscilações na gravidade dos sintomas. Num mesmo individuo vão variar de uma maneira pouco previsível ao longo do tempo.

Temos então de saber que as melhoras no período relatado são de facto devidas ao tratamento e não ao acaso. Precisamos de inúmeros casos em estudo e precisamos que sejam controlados com placebo. Precisamos também que tenham sido separados ao acaso entre os dois grupos em estudo. (tratamento e controlo). O placebo tem também uma importância enorme em casos crónicos pois influi no modo como as pessoas se sentem e relatam o progresso da doença. Também a tendência para a confirmação de melhoras e de guardar as melhores experiências na memória é importante neste aspeto. Há de facto uma tendência neste tipo de doenças para relatar melhoras e não perceber que é apenas o ciclo normal da doença.

3- Existe uma grande variabilidade individual na apresentação das doenças. Quer em gravidade quer em tipo de sintomatologia. Por isso os diagnósticos tem de ser rigorosos e os parâmetros estudados bem descritos. Deve ser o mais objetivo possível. São precisos muitos casos, até perfazer uma amostra significativa e o resultado deve vir em linguagem matemática, após análise estatística. Raramente toda a gente melhora muito mais que o placebo. Esta é a única maneira de saber que não é por acaso. E se for só um caso caímos na falácia da generalização apressada.

4- Existe uma tendência natural das pessoas para se recordarem dos resultados positivos ou de os procurarem sem reparar em negativos para um dado assunto.  É a “confirmation bias” já antes referida.

Por mais esta razão, testemunhos individuais não servem. As pessoas que vão aparecer foram escolhidas por relatarem resultados positivos e ficamos sem saber quantos eram os negativos. Mesmo que o “cherry picking” não seja propositado ele é inevitável se a coisa não for feita objetivamente, com todos os casos anotados logo no inicio para depois podermos fazer uma estatística de qual a diferença entre os positivos e negativos e se esta pode ser atribuída ao acaso.

5 – Fraude.

Penso que não vale a pena justificar porque devemos tentar fazer as coisas de um modo que evitem a manipulação dos resultados. Nem que isso é uma tendência natural de muita gente. É a primeira razão pela qual os testes têm de ser duplamente cegos. Nem o médico nem o paciente podem saber se estão a placebo ou a tratamento. E é a segunda razão porque devem ser “randomizados”. Para não escolher os que convém mais.

6-Efeito placebo.

Está cientificamente bem estudado o efeito que a crença tem na perceção da doença e da sua evolução. O efeito em termos fisiológicos é pequeno, mas é importante no modo como o paciente se sente e vê o evoluir da doença. E pode diminuir o stress que é um parâmetro que diminui a eficácia do sistema imunológico, quer em pessoas quer em animais. É a segunda razão pela qual os testes tem de ser duplamente cegos. O placebo é mais forte quanto mais a pessoa acreditar que está a ser tratada. Por isso ela não pode saber. E o médico, para evitar a tendência para encontrar positivos, também não. É preciso distinguir o efeito do medicamento em si do efeito placebo. Tudo tem efeito placebo. O que é difícil é encontrar tratamentos que vão além do placebo. É casos para dizer que placebos há muitos, tratamentos é que não. O efeito placebo não é um efeito do medicamento diretamente. É muito mais um efeito da crença no tratamento. Por isso o teste tem de comparar a eficácia do medicamento  com o efeito placebo. Se o medicamento não é mais eficaz é porque tudo o que estamos a assistir é efeito placebo.

7-Sistemas complexos.

O nosso organismo é um sistema de complexidade elevada, sujeito a influência de um meio externo quase igualmente tão complexo. É por isso necessário reduzir o número de variáveis que estão em estudo, quer intrínsecas ao paciente quer extrínsecas. Para isso é preciso um diagnóstico rigoroso dos casos, bem documentado e feito por clínicos experientes. É feita a tentativa de todas as pessoas do estudo estarem sujeitas às mesmas condições, e tem de haver um tipo de controlo – o placebo – que deve mimetizar o processo ou princípio ativo estudado em tudo menos no que está em causa. Isto é, a administração tem de ser imitada, a forma, a interação com os pacientes, etc. E é por isto que o desenho do estudo é tão importante. Tem de ser desenhado para estudar a variável em causa e deve ter-se previsto qual a melhor maneira de o fazer. Tudo deve ser rigorosamente descrito para que possa ser reproduzido, e verificado independentemente. Se não for assim, nem é possível discutir o assunto pois a informação não presta.

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