A leitura a frio
Introdução
Desde académicos a militares, existe atualmente um conjunto bastante razoável de estudos científicos sobre alegados poderes psíquicos. E o que a Ciência encontrou nestas investigações foi, não um conjunto de energias e poderes apenas dominadas por uma elite, mas sim um conjunto de técnicas que permitem simular que se tem esses poderes. Chama-se a esse conjunto de técnicas “leitura a frio”.
“Aprender a fazer uma leitura psíquica não é uma questão de frequentar cursos para videntes ou para médiuns. Em vez disso, é uma questão de elogiar, fazer afirmações com duplo-sentido, comentários vagos e ambíguos, de usar “fishing and forking”, prever o provável e transformar falhanços em sucessos”.
– Prof. Richard Wiseman, Paranormality.
Antes de explicar o que é isto, uma nota importante: nem todos os que a utilizam podem estar conscientes de a estar a utilizar. Um dos enganados pode ser o próprio executante. Entre o conjunto de razões que levam um “leitor a frio” a ter sucesso em outras pessoas, estão as mesmas que podem fazer com que o próprio se convença que tem a capacidade de conhecer o passado de estranhos, descrever a sua personalidade e prever o seu futuro. Estas técnicas são “assim tão boas”, por explorar vulnerabilidades conhecidas do pensamento humano, tais como o sentimento de sermos únicos, a tendência para nos lembrarmos apenas dos resultados positivos, para acreditar no que é ou parece bom, para procurar significado para as coisas (mesmo quando ele não está lá), etc. Por isso nem todos são aldrabões, alguns podem acreditar que têm mesmo uma capacidade especial.
Um ambiente confortável…
Embora não seja indispensável, já que a leitura a frio pode ser feita pela rádio, por email, em programas ao vivo, etc., a leitura a frio beneficia muito da colaboração do sujeito a ser “lido”, por isso um conjunto de mecanismos de sugestão e capazes de propiciar a colaboração são utilizados se possível. Criar empatia e mostrar simpatia, fazer as pessoas sentirem-se bem recebidas e confortáveis, dizer que muita gente importante recorre a videntes ou astrólogos (ou o que seja) e que já ajudou muita gente a resolver problemas, decorar o ambiente apropriadamente (não esquecendo uns quantos livros sobre o assunto à vista e uns símbolos adequados aqui e ali), etc. são os aspetos a considerar.
Os pontos chave
1 – A arte do elogio.
É por aqui que se deve começar. O poder de dizer às pessoas o que elas querem ouvir vai não só manifestar-se na predisposição certa para o resto da sessão, como causar a perceção de “tiros na mouche” quase garantidos. As qualidades sugeridas a mencionar são: personalidade equilibrada, sentido de ética, honestidade, responsabilidade, educação, simpatia, criatividade e intuição (e que seria capaz até de ser um bom astrólogo/vidente/médium/etc.). São coisas que quase todos achamos que fazem parte de nós e que temos em doses acima da média. Tal como grande sentido de humor. Não se pode no entanto atirar isto a seco. É preciso ir metendo a coisa no meio do jargão típico da pseudociência escolhida, para dar credibilidade à cena. Algo como:
“Nasceu sob o signo da Balança e posso ver como tem uma personalidade equilibrada, típico dos Balança, mas no seu caso mais marcada ainda por um forte sentido ético e de dever, devido à influência de Júpiter na quinta casa, e blá, blá, blá.”
Não vem na bibliografia consultada mas eu arriscaria ainda a inteligência entre essas qualidades, já que como Descartes dizia “a inteligência parece ser a coisa mais bem distribuída do mundo pois ninguém parece queixar-se da pouca que tem”.
Ah, e não esquecer de fazer um elogio à mente aberta.
2 – Produzir afirmações duplas (e contraditórias) ou como diz o povo, “dar uma no cravo e outra na ferradura”.
Para tirar partido do facto das pessoas notarem mais o que lhes faz sentido do que o resto, é boa técnica dizer uma coisa e o seu oposto de uma assentada. É uma das técnicas mais importantes e mais usadas.
Se por um lado a tendência das pessoas é só “ouvirem” o que interessa, por outro lado a maioria das características da natureza humana podem de facto manifestar-se de maneiras diferentes em diferentes alturas. Desde que não se quantifique ou especifique demasiado, a coisa vai soar bem. Claro que, como sempre, deve ser bem embrulhado no jargão típico da pseudociência em causa.
Os traços de personalidade a abordar são os “grandes 5”: a abertura, a conscienciosidade, a extroversão, a amabilidade e o neuroticismo. Como se disse o que se faz é dar uma no cravo e outra na ferradura:
“A mensagem que estou a receber é de que é uma pessoa muito sociável e que preza a amizade mas por vezes prefere dedicar algum tempo a si própria ou passar o tempo na companhia de um bom livro”. Ou “ Apesar de ser uma pessoa criativa e com muita imaginação é bem capaz de ser pragmática e terra-a-terra noutras alturas quando se torna necessário.”
Os anglófonos chamam a isto popularmente “rainbow ruse”. Não há como errar. São “hits” garantidos.
3 – Fazer afirmações vagas e dar tiros de caçadeira
Afirmações vagas são afirmações que podem ser interpretadas de diversas maneiras ou são tão abrangentes que provavelmente incluem uma ponta de verdade algures.
O leitor pode ainda pedir à pessoa que está a ser “lida” que o ajude a retirar sentido das imagens que está a “ver” e pode depois ir aumentando a especificidade do que diz:
“Estou a ver uma viagem, talvez pessoal ou de alguém próximo, está a ver a que me refiro?”
“Tenho aqui alguém que quer falar contigo, parece-me um homem, um familiar, talvez um avô ou um tio, ou um amigo da família…”
“Estou a ver uma coisa vermelha, talvez um lenço, talvez uma camisa… Estou a ver alguém a mexer nela, isto faz sentido para ti? “
Ou então afirmações completamente abstractas: “estou a ver um círculo a fechar-se, sabes a que se refere?”. Alguns leitores a frio conseguem acertar em coisas que nunca chegam eles próprios a saber o que são! Mas um “hit” é um “hit”.
No “tiro de caçadeira” isto é conseguido com muitas propostas feitas de uma só vez em vez de uma só abrangente. É como se fossem vários tiros de uma vez. Por exemplo, o clássico:
“É uma pessoa que se chama algo como Salomé, Sandra, Sara, Lara, Luísa, Luís… – Luísa, diz a pessoa – Sim, Luísa, não é? Era uma amiga próxima, uma familiar talvez. Sim, era a avó, claro que consigo ver claramente que era a avó, é uma pessoa já com alguma idade, mas com um ar muito afável…”
Nota: Ocasionalmente pode-se avançar com uma afirmação específica. Se se acertar, porreiro, é algo que ninguém esquece tão cedo. Se falhar, é minimizar a coisa, e passar à frente. Não será lembrado. Há ainda uma terceira técnica que consiste em insistir numa afirmação algo específica e se vai insistindo até a que pessoa seja capaz de encontrar algo na sua vida a que ela se possa referir. O Ian Rowland chama-lhes “Push Statements” (ver técnica 6).
4 – “Fishing and forking”: Andar à pesca e ramificar.
Andar à pesca é como o tiro de caçadeira mas mais lento. Largar perguntas com mais calma e observar a reação das pessoas. É o atirar o barro à parede a ver se cola. Depois de colar, não largar e aprofundar. Agir como se se tivesse sempre tido isso em mente.
Enquanto não há nenhum sinal de se ter acertado muda-se de tema, ramifica-se, e vão-se deitando mais umas hipóteses para o ar.
O sinal de se ter acertado pode vir conscientemente ou não, mas pode-se contar com ele. Toda a gente faz isso normalmente numa conversa se não tiver atenção específica para não o fazer – e não é preciso pensar em algo complexo como o que se passa no poker – uma pessoa pode por exemplo ir abanando a cabeça negativamente muito suavemente até de repente parar e lançar um sorriso quando ouve a coisa certa, ou manter uma expressão tensa e relaxar de repente, etc. O que é certo é que as pessoas reagem quase sempre quando é dito algo com significado. Esta é a razão pela qual muitos videntes preferem estar a segurar a mão da pessoa – ajuda muito. Mas muitas pessoas vão mantendo o diálogo aberto, mesmo verbalmente. E a leitura a frio é isso mesmo. Um diálogo. Mas um em que as pessoas não notam que estão a contribuir significativamente.
Esta é uma das técnicas mais importantes da leitura e frio e a usada mais vezes em espetáculos televisivos do género.
Por exemplo, o leitor a frio pode dizer “Ele está a apontar para o peito, talvez pulmões ou talvez mais abaixo, o estômago, ou…” ao que a pessoa interrompe “sim, morreu de ataque cardíaco” e o leitor continua, fazendo sua a resposta dada, como se tivesse sempre sabido de que era assim: “sim, morreu de ataque cardíaco, está a apontar para o coração, e….”
5 – A Ilusão da originalidade – Efeito Forer
A maior parte de nós não sabe o suficiente sobre uma data de coisas em que afinal somos todos iguais. Ou quase. E sente no seu íntimo que ninguém é realmente como ele próprio. O tipo de coisas que nos levam a achar que somos excelentes condutores, que temos um sentido de humor acima da média, etc, leva-nos a achar que de certo modo somos únicos e especiais. Mas aqui a técnica em questão não é o elogio para conseguir acertar, mas dizer aquelas coisas que dizem qualquer coisa a quase qualquer pessoa. O dom especial que era admirado quando éramos crianças e que nunca desenvolvemos, a caixa das fotografias desorganizadas, a peça de roupa que se rasgou ou o salto do sapato que se partiu numa altura inconveniente, etc. Existe uma lista deste tipo de coisas prontas a usar aí pela Internet. E raios, como é que eles sabiam que eu tinha ainda guardada aquela chave que já nem sei o que é que abre?
E há sempre os dados estatísticos para aumentar as probabilidades de acertar só por saber a idade, o género, as tendências atuais, a classe social, etc.
O efeito Forer, que é o efeito em causa nas “afirmações tipo Barnum”, consiste então em tirar partido deste sentimento de originalidade e da tendência de dar sentido específico e pessoal a afirmações vagas. É a tendência das pessoas acharem que algo é com elas.
Muitas vezes as afirmações tipo Barnum aparecem numa classe à parte nas técnicas de leitura a frio e em vez da ilusão de originalidade. Eu segui a classificação do Prof. Richard Wiseman. Distingue-se da técnica do tiro de caçadeira porque não é tanto o caráter geral da afirmação que lhe dá o “hit”, mas o facto da pessoa lida percecionar algo na afirmação como uma coisa única referente a si ou à sua vida.
Para além dos exemplos anteriores, posso acrescentar algo como: “estou a ver muita gente preocupada com uma doença ou acidente na sua infância, mas depois estão todos aliviados, foi só susto não foi? Não era assim tão grave, mas na altura todos estavam muito aflitos.”
6 – Transformar limões em limonada. A arte de fazer o falhanço transformar-se num “hit”
Conforme se vão dizendo asneiras, é preciso ir reagindo apropriadamente. Falhou, é passar rapidinho à frente:
“Não. Claro que não, não me parecia mesmo, nem era nada o seu género, que é uma pessoa tão sensata” ou “Não? Pois, bem me pareceu, mas era para tirar aqui uma coisa a limpo, continuando,”.
Mas existem mais estratégias, e nem todas servem para as mesmas coisas. Outra estratégia será ir aumentando a inespecificidade da afirmação, tipo de uma viagem ao Porto passar para uma viagem ao Norte até ser apenas uma viagem a uma outra cidade. Outra ainda é dizer que era uma afirmação metafórica, que por exemplo no caso da viagem não queria dizer viagem no sentido físico. Explicar por exemplo que se podia referir a uma alteração no curso da vida ou uma experiência. Há um grande número de fugas e correções possíveis.
Como no “push statement”, o executante da leitura a frio pode mesmo manter-se relativamente agarrado ao erro e insistir nele até que a outra pessoa faça sentido dessa frase. Se finalmente a pessoa descobrir qualquer coisa em que essa afirmação possa encaixar é um êxito extraordinário já que dá a sensação que era algo que nem o próprio estava a compreender. Como já referi, podemos quase sempre confiar na capacidade das pessoas de verem significados e pormenores pessoais em coisas que não têm nada a ver consigo. Às vezes é só insistir, já que se pedirmos para que percam tempo com isto se fazem verdadeiros milagres. Se não funcionar, pode-se sugerir que pode ter sido com uma pessoa próxima e/ou mandar ir pensar para casa porque alguma coisa deve ser, já que “estou a ter uma imagem tão forte de…”. Dentro de umas horas será esquecido. Ficará apenas na memória o que estava certo. Como em tudo o resto.
O alegado psíquico pode ainda fazer um sumário da sessão mesmo antes de finalizar relembrando todos os “hits”, o que vai fortalecer ainda mais a tendência para memorizar os resultados positivos, passando uma borracha psíquica sobre todas as tentativas que falharam.
O Ian Rowland sugere que em casos extremos de pessoas desconfiadas e quando a coisa começa a entornar se pode fazer uso das falácias conhecidas mas usá-las ao contrário: apelos à ignorância, a “wishful thinking” e explicar como “uma mente aberta pode tornar todos muitos mais felizes”. Ele acrescenta que muitos alegados psíquicos quando a coisa começa a complicar ainda mais podem dizer algo como “existem muitas coisas a bloquear, como isto e aquilo, e a leitura não vai funcionar consigo” e devolver o dinheiro prontamente.
Acabamentos extra
O mesmo Ian Rowland acrescenta uma série de outras técnicas, não mencionadas pelo Richard Wiseman de que eu penso valer a pena a menção de pelo menos três:
1 – Afirmações não falsificáveis, ou seja, que não podem errar por serem do tipo: “deve” ou “deverá”, como em “deve ter cuidado com a sua saúde”.
2 – Dizer às pessoas o que elas querem ouvir. Mas sem ser o elogio. Tipo: “vai tudo correr bem”.
3- Self fulfilling prophecies (pelo menos enquanto forem lembradas, que é o que interessa), como por exemplo: “Vai passar a ter mais cuidado com a alimentação”.
BIBLIOGRAFIA:
Ian Rowland, The Full Facts of Cold Reading
Richard Wiseman, Paranormality (no qual vem sugerida a leitura do livro de Rowland para saber mais sobre cold reading).
Rational Wiki em: http://rationalwiki.org/wiki
Do excelente “The Skeptic’s Dictionary” pelo Prof. R. Carrol:
http://www.skepdic.com/medium.html#history