Nós vivemos num mundo perigoso para os mais crédulos. Um mundo onde qualquer um pode afirmar o que quiser sem evidências. Um mundo onde terapias alternativas ineficazes ou até mesmo perigosas são promovidas todos os dias. Um mundo onde teorias da conspiração isolam as pessoas num reino de fantasia e alienação. Um mundo onde profecias apocalípticas levam os crentes mais determinados a porem fim à sua própria vida e de terceiros. Sobretudo, um mundo frequentemente livre de consequências para quem difunde a ignorância, quer seja por crença genuína, quer seja por aproveitamento financeiro. É este o preço a pagar por esse bem precioso que é a liberdade de expressão.
O problema é que algumas pessoas acham que a liberdade de expressão deve ser apenas para um dos lados, que as suas crenças pessoais ou negócios devem ser imunes a críticas. O motivo no primeiro caso será um ego ofendido, já no segundo será a perspectiva da perda de dinheiro proveniente de uma fonte inesgotável de vítimas voluntárias. Em ambos os casos, como não possuem evidências para suportar a sua posição, resta-lhes apenas recorrer a outras tácticas.
Cientistas, médicos, jornalistas e bloggers estão a ser alvo de bullying por criticarem publicamente pseudociência e crenças perigosas. Uma das práticas correntes é o processo por difamação. O objectivo por vezes nem sequer é o de ganhar o processo, mas simplesmente de tentar silenciar o adversário por exaustão psicológica e financeira. Estes processos podem arrastar-se durante anos e implicam um grande esforço financeiro por parte do acusado. Simultaneamente, o visado serve ainda como exemplo de todas as chatices que alguém pode vir a ter por se atrever a meter no caminho dos pseudocientistas.
Um dos casos mais mediáticos foi o de Simon Singh, um escritor e comunicador de ciência, que foi processado pela Associação Britânica de Quiroprática (BCA) devido a um artigo que escreveu em 2008 no jornal The Guardian. No artigo ele descrevia as estatísticas das pessoas seriamente magoadas ou mortas por tratamentos quiropráticos, denunciando ainda que a BCA suportava o tratamento de doenças em crianças, para as quais não existem evidências de que a quiroprática possa ajudar. A BCA acabou por desistir do processo em 2010, arcando com a maioria dos custos. Podem ver um documentário sobre o caso:
Em 2008 Ben Goldacre, médico e também escritor e comunicador de ciência, foi processado depois de escrever três artigos onde descrevia as actividades do multimilionário dos suplementos alimentares, Matthias Rath, um homem que afirma conseguir curar a diabetes, cancro e SIDA apenas com o auxílio de vitaminas. Um sujeito muito perigoso como se pode ver pelo seu currículo, até porque alguém que processa uma organização como os Médicos Sem Fronteiras não pode estar do lado certo. Em 2005 chegou mesmo a distribuir milhares de panfletos em bairros pobres de África do Sul afirmando que a medicação contra o VIH era tóxica e que as pessoas deviam usar antes as suas vitaminas. Rath acabou por desistir do processo suportando 220,000 libras em custos judiciais. O último capítulo do livro “Ciência da Treta” de Ben Goldacre, que falava de Rath e do negacionismo do VIH, foi impedido de ser publicado na 1ª edição devido ao litígio, mas acabou por sair na 2ª edição e a versão digital encontra-se disponível no site do autor de forma gratuita.
Em Agosto de 2011, também a multinacional homeopática Boiron ameaçou processar um blogger italiano que se atreveu a satirizar um dos seus produtos mais vendidos, o Oscillococcinum. Um produto que é diluído até não restar qualquer molécula do ingrediente activo, que neste caso é fígado e coração de pato. Satirizar a homeopatia é sempre divertido, até porque se eu tivesse de escolher a coisa mais absurda que já ouvi em toda a minha vida, escolheria sem grandes dúvidas a homeopatia, que é algo que nem aos comediantes escapa. Este é de resto um exemplo perfeito de bullying, uma empresa multimilionária a mobilizar a sua equipa de advogados para tentar silenciar um simples blogger, tentando fazer dele um exemplo para todos verem. O problema é que se esqueceram do Efeito Streisand, em que a tentativa de remover ou ocultar alguma informação na internet tem exactamente o efeito contrário. O caso transformou-se num desastre de relações públicas para a Boiron, que acabou por desistir 25 dias depois da ameaça de processo.
As leis de difamação na Grã-Bretanha são especialmente nefastas à liberdade de expressão, existindo até uma espécie de “turismo jurídico” de pessoas que querem silenciar os seus críticos a todo o custo. Mas tudo isto pode estar prestes a mudar devido ao grupo “Sense About Science” e à campanha pela reforma das leis de difamação. Mais de 57300 pessoas assinaram a petição e a classe política já se mostrou favorável à alteração das leis de forma a proteger cientistas, jornalistas e bloggers de se expressarem livremente.
Mas os processos em tribunal não são a única táctica, há quem recorra a golpes mais baixos com variadas formas de intimidação. Não é fora do comum escreverem com ameaças para a instituição, chefe e até colegas de cientistas, para tentarem que eles sejam despedidos. Para mim isto diz tudo sobre a fibra moral das pessoas que recorrem a estes métodos. Felizmente, a maior parte das vezes tem o efeito exactamente oposto, a chefia e a instituição ficam ao lado do cientista oferecendo-lhe apoio contra os fanfarrões.
Ainda mais recentemente surgiu mais um exemplo de intimidação contra um jovem blogger de 17 anos, Rhys Morgan, também conhecido como o rapaz que expôs a “Solução Mineral Milagrosa”, um produto que afirmava curar o cancro, SIDA e malária, mas que a FDA classificou como sendo lixívia industrial. As intimidações começaram depois de Rhys Morgan escrever no seu blog sobre a clínica Burszynski. O jovem tomou conhecimento de uma campanha de angariação de fundos para uma mulher com cancro terminal que pretendia fazer lá um tratamento, mas depois de fazer uma pesquisa ficou alarmado com a falta de evidências para os tratamentos oferecidos pela clínica. A terapia com “antineoplastons”, proteínas que são extraídas da urina, é considerada pela comunidade científica como sendo um total disparate. Ainda assim, Stanislaw Burzynski cobra milhares de dólares por cada tratamento que faz na sua clínica no Texas, aonde acorrem pessoas desesperadas por uma cura. Rhys Morgan recebeu um email de um homem que afirmava ser um representante da clínica Burszynski, ameaçando-o com um processo por difamação caso ele não removesse o post. Seguiram-se outros emails com o tom cada vez mais ameaçador, no último email o homem chegou mesmo a anexar uma imagem da casa de Rhys Morgan retirada do Google Maps. Mais tarde veio-se a descobrir que afinal o homem nem sequer era um advogado, mas que fazia parte de uma firma contratada por Burszynski unicamente para intimidar quem o critica na internet. Os emails pararam entretanto.
Conclusão:
Enquanto a ciência prospera com a crítica, a pseudociência necessita de silenciar os críticos para sobreviver. Seria impensável resolver disputas científicas no tribunal ou recorrendo a intimidações. As disputas na ciência resolvem-se com a observação e experimentação. No fim ganha quem possuir as evidências do seu lado. Criticar a pseudociência e informar o público sobre produtos/tratamentos ineficazes ou perigosos nunca foi tão importante como agora. Fazem falta mais jovens como Rhys Morgan. Por mais dificuldades que os pseudocientistas nos criem, por mais que nos tentem silenciar, a lição que se pode tirar destes casos é que a verdade acaba sempre por prevalecer. E que estas tentativas patéticas de censura criam exactamente o efeito oposto ao pretendido.
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