Instalar a desconfiança
O nosso cérebro e os nossos sentidos não podem ser confiados cegamente. O cérebro tem vida própria1 e por vezes toma decisões e não nos explica porquê ou como o fez. Os sentidos, por sua vez, muitas vezes não funcionam como nós esperamos e pregam-nos partidas.
Para que não tenhamos dúvidas sobre esse facto e para que não pense que estou aqui só para o colocar de mal com o seu cérebro e restante corpo, faça o seguinte exercício:
Tape o olho esquerdo e olhe com o olho direito directamente para a estrela da figura 1. Comece com uma distancia de cerca de 50 cm vá aproximando a cara devagar sempre a olhar para a estrela. As duas bolas devem ser visíveis com a sua visão lateral. Vá afastando e aproximando a sua cara do monitor devagar entre os 20 e os 50 cm até uma das bolas desaparecer. Se não conseguir experimente, com distâncias maiores/menores.
Viu umas das bolas a desaparecer? Espero que sim. Não se trata de uma ilusão de óptica que funcione para uns e não para outros, é uma característica física dos nossos olhos que é impossível contornar.
Do olho ao cérebro
A luz é detectada por células foto-receptoras instaladas na retina dos nossos olhos. Essa informação é convertida em sinais eléctricos e transmitida ao cérebro através do nervo óptico. No olho de um polvo (à direita na figura 2) a história acaba aqui, mas nos vertebrados (à esquerda) existe uma complicação. Os sensores ópticos estão voltados para trás e as fibras ópticas que fazem a ligação ao cérebro têm de atravessar a retina para chegar ao cérebro. Na zona de passagem, como é óbvio, não há células foto-receptoras e por isso, não vemos. Esse ponto chama-se ponto cego fisiológico.
Felizmente, temos dois olhos, e o cérebro faz a composição dos dois para nos apresentar uma imagem completa e sem falhas. É um feito extraordinário da parte do nosso cérebro e levar-nos-ia a levantar-mo-nos e a fazer-lhe uma ovação não fosse um pequeno pormenor que apesar de fantástico não deixa de me incomodar; o que o cérebro não vê, inventa!
Se repararam, e se não repararam façam de novo, o local onde o ponto desaparece não fica preto como devia ficar. Se não há foto-receptores para verem o que há ali, não entra luz, se não entra luz devia ficar preto, mas não fica, fica branco como o resto da folha.
É absolutamente brilhante: se o que está à volta é branco, ali naquele pontinho que não sei o que se passa o mais certo é ser branco também.
Pois é, é o mais certo mas não quer dizer que seja o certo, como é o caso. Experimente o mesmo exercício mas agora com dois traços em vez de duas bolas:
Se o leitor não for um polvo, é provável que haja uma altura em que ao invés de dois traços vai ver um. O que acontece é que o cérebro não vê o que se passa entre os dois traços e se à esquerda à traço e à direita também, o mais provável é ser tudo um traço.
Não é um problema muito grave, afinal o ponto é pequeno e não dá para o cérebro inventar muito nesse espaço. No entanto, esta experiência serve para percebermos que o cérebro quando não sabe, pode inventar, e como tal as suas conclusões têm de ser encaradas com alguma desconfiança, especialmente quando somos confrontados com visões que não se enquadram com o esperado funcionamento da realidade como a conhecemos.
Há inúmeros exemplos e testes sobre ilusões de óptica, ou seja, situações em que o cérebro interpreta mal os dados que chegam dos olhos. O exemplo da figura 4 é um dos meus favoritos, tal é a clareza e simplicidade do mesmo.
O cérebro tem dificuldade em avaliar o tamanho dos objectos, usando normalmente os objectos em redor para comparações.
Ele sabe que o círculo central da esquerda é maior que os círculos à volta e que o círculo central da direita é menor que os círculos à volta; círculo da esquerda maior, círculo da direita menor; conclusão: circulo da esquerda maior que o da direita.
Se tirarmos os objectos da comparação, como fizemos na figura 5, a ilusão é desfeita.
E não pense que isto só acontece com testes em folhas de papel ou no computador. Este tipo de erro acontece no dia a dia e é, por exemplo, responsável por a lua parecer maior junto ao horizonte do que quando vista no meio do céu. Este tipo de ilusão é música para os ouvidos dos artistas/videntes2 que podem logo fazer belas previsões do género :
amanhã por volta das 22h a lua vai estar no ponto mais próximo da terra e influenciar negativamente/positivamente (escolher conforme o o aspecto saudável/doente/feliz/infeliz do cliente) a sua noite.O cliente, se tiver inclinação para acreditar neste palavreado vazio, vai estar atento a aspectos da sua noite que confirmem o que o vidente disse, e voilá, uma previsão correcta por parte do vidente.
Ilusões e mais ilusões
Mas nem só de ilusões de óptica vive o nosso cérebro. As ciências cognitivas têm trazido à luz uma série de “problemas” com o funcionamento do cérebro que explicam alguns dos mais velhos mitos que rodeiam a espécie humana. Alguns desses erros de funcionamento têm servido como base para alguns dos truques mais velhos.
Eis dois fenómenos curiosos…
Movimentos inconscientes
Quase toda a gente conhece as sessões em que supostamente se comunica com espíritos através de copos que se deslocam em cima de mesas ou aquelas pessoas que acham que conseguem adivinhar o sexo de um bebé na barriga de uma pessoa, com uma agulha pendurada num fio ou ainda as pessoas que pensam que conseguem descobrir água com um graveto nas mãos.
Todos estes fenómenos são derivados de ordens sub-conscientes que o nosso cérebro dá aos nossos membros para eles se moverem de acordo com as nossas expectativas. Se sabemos a resposta que o copo quer dar, vamos estar à espera que ele se desloque na direcção da letra certa; se achamos que num determinado local há agua achamos que o graveto deve abanar. Essa expectativa é o suficiente para o nosso sub-consciente enviar ordem aos músculos para efectuar o movimento que esperamos ver acontecer.
Este fenómeno chama-se efeito ideomotor, e o que é extraordinário é que este fenómeno foi descoberto em 18523 durante investigações efectuadas para perceber como funcionava o truque dos espíritos que comunicam com pessoas através de objectos e 150 anos depois ainda os artistas enganam pessoas com ele!
Se quiser, pode facilmente tentar reproduzir este efeito:
Pendure uma agulha, um anel, uma chave ou qualquer outro objecto pequeno num fio com pelo menos 30 centímetros, pegue na ponta do fio e estique o seu braço horizontalmente à sua frente. Agora, esqueça o braço, não o tente movimentar mas também não faça força para ele não se mover e concentre-se no objecto. Visualize-o a começar a baloiçar lentamente na ponta do fio…. não tente mexer o braço…. mas também não o impeça…ordene e visualize o objecto a baloiçar…
Se tudo correr bem, a sua mão vai começar a fazer micro-movimentos de modo a movimentar o objecto. “Mas é claro que a mão mexe, isso é uma parvoíce”. Pois é, Mas é assim que os artistas fazem! Se alguma vez for confrontado com um artista destes, não olhe para o objecto que ele tenta movimentar/rodar/abanar, olhe para a mão ou para o braço. No caso dos copos “fantasmas” faça perguntas a que nenhum dos presentes saiba a resposta e/ou experimentem com os olhos vendados4.
Ver e ouvir o que não está lá
O ser humano é um animal social, e como qualquer animal social vive melhor, prospera, pois claro, em sociedade.
Um ser humano sozinho tem grande probabilidade de não sobreviver, e por isso, os nossos cérebros estão programados para reconhecer e encontrar outros seres humanos, mais especificamente as suas caras ou vozes. Mas no seu esforço por reconhecer vozes e caras, vê caras ou ouve vozes onde elas não existem.
O fenómeno psicológico de ver ou ouvir o que não está lá, é a pareidolia e é responsável por vermos caras na lua, cristos em torradas, formas nas nuvens, figuras em estalactites e estalagmites (Figura 6) e ouvirmos frases inexistentes em músicas tocadas de trás para a frente.
Precisamos de um cérebro novo?
O nosso cérebro é fantástico e faz maravilhas, estes erros são negligenciáveis no dia a dia e não devemos perder muito tempo a preocupar-nos com eles. Excepção feita quando somos confrontados com informações/factos/ideias novas especialmente se vierem pela mão de quem nos quer vender alguma coisa. Nessas situações é importante estar a par destes erros cognitivos e encarar o assunto com o maior dos cepticismos e muito espírito critico.
Mas esperem, ainda tenho mais um truque na manga!
Olhem para os quatro pontos no centro da figura 7 durante 30 segundos sem piscar os olhos, depois olhem de imediato para uma parede branca e pisquem os olhos rápida e repetidamente.
Não digam que vão daqui sem uma experiência espiritual!
Notas de Rodapé
1. Estudos recentes apontam na direcção de a maior parte das nossas decisões ser tomada no sub-consciente que só posteriormente “informa” a parte consciente do cérebro. Sobre este assunto, vale a pena ler “Incognito: The Secret Lives of The Brain”, David Eagelman, Canongate, 2011
2. Um vidente não passa de um artista especializado na arte da ilusão. Daqui para a frente passo a usar somente o vocábulo “artista”.
3. Para os mais interessados aconselho vivamente a leitura do documento onde foi descrito pela primeira vez o efeito ideomotor digitalizado e colocado online em http://www.sgipt.org/medppp/psymot/carp1852.htm
4. Há inúmeros vídeos na Internet a explicar e a demonstrar o efeito ideomotor que podem ser encontrados se procuramos por “ideomotor video”, por exemplo.
Índice de Figuras
2. Evolução do olho, Wikimedia, licença CC-BY S.A. 3.0
6.a Cara em Marte, Jet Propulsion Lab of the United States National Aeronautics and Space Administration (NASA) under Photo ID: PIA01141.
6.b Caixa de Cartão, Wikimedia, licença CC-BY S.A. 3.0
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