MTC e a protecção de animais

As razões que estão por detrás do aumento da procura e da profusão de terapias ditas alternativas são várias. Umas relacionadas com a iliteracia científica que impede que se identifique a implausibilidade de grande parte delas; outras com uma tendência da sociedade actual procurar a novidade, outras como uma reacção aos sistemas nacionais de saúde. Existem, também, as motivações de cariz ideológico que se prendem com princípios éticos e tomadas de posição perante os problemas ambientais do mundo. 

Alguns destes princípios éticos são fundados numa concepção falaciosa em que a natureza é uma espécie de paraíso perdido ao qual interessa regressar. Nesta concepção existe uma barreira intransponível entre aquilo que é natural, sempre entendido como algo positivo, como se a natureza existisse apenas para servir o Homem, e aquilo que é sintético, fabricado pelo homem, potencial causador de todos os males da sociedade moderna. 

Mas existem realmente preocupações éticas merecedoras de atenção entre estes amantes da natureza. Algumas pessoas tomam decisões conscientemente quando optam por recorrer a legumes de origem biológica, quando optam por comprar produtos cosméticos que não foram testados em animais e optam igualmente por comprar produtos “naturais” convencidos que naturais são apenas as plantas. 

Entre estes, quantos saberão que a Medicina tradicional chinesa (MTC) emprega muitas substâncias de origem animal na sua materia medica? [1]

A bílis de urso é tradicionalmente usada na medicina tradicional chinesa por conter um ácido biliar secundário – ácido ursodeoxycholico – e que pode ter benefícios na regulação do colesterol e na eliminação de pedras nos rins sem ser necessário cirurgia. Segundo a Science Based-Medicine [2], o ácido biliar que existe na bílis de todos os mamíferos, foi sintetizado há décadas e é uma alternativa eficaz ao ácido retirado da bílis dos ursos. No entanto, a maioria dos praticantes de MTC recusa a aceitar a versão sintética. [3]

Na China, os animais eram capturados do seu meio ambiente natural, mas a redução drástica destes animais levou à criação de quintas onde os ursos são mantidos em cativeiro com o único propósito de extrair a bílis e sem qualquer preocupação com o bem-estar do animal. (As descrições e imagens de alguns artigos que denunciam a prática podem ferir sensibilidades).

Os cavalos marinhos são frequentemente apanhados e secos ao sol e quando feitos em pó são utilizados na medicina tradicional chinesa como afrodisíacos. Segundo a Acupuncture Today, os cavalos-marinhos estão associados aos meridianos do fígado e do rim e são utilizados para tratar asma, infecções da garganta e dores abdominais.  

Cavalos marinhos apreendidos pela polícia do Peru.
Foto: Enrique Castro-Mendivil

Recentemente, mais de 16.000 cavalos-marinhos secos foram apreendidos pela polícia peruana. Tinham como destino a Ásia.

O corno de rinoceronte  (composto por queratina) é usado na medicina tradicional asiática desde longa data para curar várias maleitas, desde dores de cabeça até a vómitos, passando por possessões demoníacas. De uma maneira geral, todas as alegações de benefícios não têm fundamento. [4] [5]

Em 1993 o governo chinês aderiu e assinou a convenção para a protecção de espécies em perigo. Como consequência o uso do corno de rinoceronte foi proibido. No ano passado, vários praticantes de medicina tradicional chinesa vieram a público condenar a prática e refutar os mitos que andam à volta dos supostos benefícios para a saúde do corno de rinoceronte. [6] [7]

Apesar disso, o facto é que os ataques furtivos a este animal estão a aumentar e não a diminuir, como se confirma pela notícia de ontem no The Guardian .

Algo preocupante é a existência de produtos à base de corno rinoceronte sem qualquer vestígio da substância que está no rótulo. A procura é tal que à falta do principal ingrediente, os produtos são vendidos adulterados, sem que o consumidor se interrogue sobre o que está realmente a comprar.

Para além de espécies em perigo, mesmo no campo vegetal, a situação é grave.  Numa análise a 15 preparados usados na medicina tradicional chinesa, foram encontradas vestígios de plantas consideradas perigosas, como é o caso da Aristolochia, uma planta que contém um cancerígeno, sem que esta constasse no rótulo. [8]

UPDATE 24 Outubro 2012

Na África do Sul, Mark Wilby está a tentar salvar os rinocerontes com uma acção, no mínimo curiosa, vejam o vídeo em baixo ou leiam a notícia em inglês aqui.

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=clp4elVlcHw&feature=plcp]

Fontes:

[1] Beijing Digital Museum of TCM 

[2] Asian Bear Bile Remedies: Traditional Medicine or Barbarism?

[3] Medicinal value of bear bile

[4] Rhino horn: All myth, no medicine

[5] Rhino Horn Use: Fact vs. Fiction

[6] Rhino horn use slammed by Chinese traditional medicinal practitioners

[7] WWF, TCM Practitioners Rebut Rhino Horn And Cancer Cure Link 

[8] Screen uncovers hidden ingredients of Chinese medicine 

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11 Comments

  1. No caso específico do rinoceronte, há realmente que ressalvar que o corno de rinoceronte é constituído por alfa-queratina, a mesma proteína que se encontra nos nossos cabelos ou unhas, bem como na lã de ovelha das nossas camisolas.

    Podem verificar esta informação nesta publicação muito interessante sobre proteínas e que está livremente acessível na página do National Institute of General Medical Sciences.

    http://publications.nigms.nih.gov/structlife/chapter1.html

    “If a recipe calls for rhino horn, ibis feathers, and porcupine quills, try substituting your own hair or fingernails. It’s all the same stuff—alpha-keratin, a tough, water-resistant protein that is also the main component of wool, scales, hooves, tortoise shells, and the outer layer of your skin.”

    1. “If manta ray gill rakers, white rhino horns, tiger bones, bear claws and other body parts could actually cure cancer and other diseases, scientists would be studying them to isolate the active ingredients — without further endangering wild animals. ”

      Em poucas palavras… é realmente uma pena que aqueles que recorrem a estas práticas não tenham isso em consideração.

      Obrigada pelo link, Marco!

  2. Para se extrair a bile de urso o animal é mantido permanentemente preso, deitado numa jaula minuscula, com uma cânula de metal enfiada na barriga. Essa tortura inominável dura de 7 a 15 anos. E para quê esse absurdo se existe um produto equivalente sintético? É muita ignorância, isso deveria ser proibido, cadeia nesses canalhas.

    1. Infelizmente, para muita gente o processo de sintetizar algo na natureza é visto como anti-natural, perigoso e a evitar.

      É muito complicado tentar inverter a situação num país como a China. Mas podemos fazer algo através da sensibilização das pessoas para esta prática terrível. Talvez tomando conhecimento, as pessoas evitem comprar produtos à base de bílis de urso.

  3. Bom dia,

    Dou-vos os parabéns por tão elevadas preocupações ecológicas e pela vossa luta na defesa dos animais! Sabem se estes ingredientes são vendidos em Portugal? Somos afetados por este problema?

    Cumprimentos,
    Pedro Albuquerque

    1. Obrigada pelo comentário.

      É difícil saber se algum dos produtos à venda em Portugal contêm estas ou outras substâncias de origem animal.

      A maioria está escrita em chinês, muitos destes produtos não passa por qualquer tipo de controle, quer de segurança quer de qualidade.

      Muitos deles são importados directamente da internet.

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