A evolução da prática da Acupunctura ao longo dos últimos séculos: Da prática de sangria à prática gentil, milenar e holística.
No último post falámos sobre as origens da acupunctura e como esta prática pode ter origem numa concepção do corpo, da doença e entendimento do universo muito próximas àquelas que percorreram toda a Antiguidade mediterrânica e medievalidade europeia.
A Acupunctura desenvolveu-se ao longo do segundo milénio na China ao lado de outras práticas, como o uso de ervas medicinais, dietas e moxabustão. Como a prática de dissecação era proibida, esta prática sobreviveu sem um real conhecimento anatómico.[1]
Durante a Dinastia Ming (1368-1644) foi publicado o Compêndio de Acupunctura e Moxabustão. Nele estão descritos um conjunto de 365 pontos de acupunctura que, de acordo com A. White e E. Ernst, são usados ainda hoje na actualidade. [1] No entanto, David Ramey refere que os textos antigos não nos dão indicações precisas da localização dos pontos de acupunctura. [2]
Durante o século XVII, o interesse pela acupunctura sofreu um considerável declínio. A administração de ervas medicinais e cauterização, pelo contrário, parecem ter sido as práticas médicas mais generalizadas. A acupunctura ficou relegada para a prática de “rua”, feita por homens e mulheres iletrados, praticamente sem treino. [1] [3]
É no final desse mesmo século que Willem ten Ryhne, um holandês ao serviço da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (WIC) no Japão, escreve aquele que terá sido o primeiro tratado europeu sobre acupunctura, Dissertatio de Arthritide: Mantissa Schematica: De Acupunctura: Et Orationes Tres, publicado em 1683. Ten Ryhne terá sido também o responsável por ter cunhado o termo acupunctura. [4]
Apesar de não descrever a filosofia que estava por detrás da prática, ten Rhyne descreve a prática de “picar com uma agulha”, por vezes gentilmente, outras com o auxílio de um martelo. Também faz a identificação dos pontos de acupunctura e identifica os pontos e as linhas que os unem como veias. [4] (No texto em hyperlink, esta identificação é assumida como um erro da parte de ten Rhyne)
Na China, durante o século XIX, os avanços da medicina fizeram relegar as práticas tradicionais para o campo da superstição. Em 1822 um édito do Imperador Daoguang (1782-1850) baniu a prática e o ensino da acupunctura da Academia médica Imperial, sendo a prática considerada uma barreira ao progresso da medicina. [1] O mesmo acontecerá no Japão em 1875. No ano 1929, a China criminalizou a prática. [1] [3] [6] [8]
Durante o período entre 1927-36, são praticamente inexistentes as menções a “medicina” tradicional chinesa e não são publicados quaisquer artigos sobre acupunctura nas revistas científicas. [2]
Nos anos 30, um pediatra chinês, Cheng Dan’an (1899-1957) tendo estudado no Japão, propôs a recuperação da terapia de agulhas porque a sua acção poderia ser explicada pela neurologia. Tendo como base os conhecimento de anatomia e fisiologia, reposicionou os pontos de modo a fazê-los coincidir com as vias nervosas e a desviá-los das veias, onde anteriormente teriam sido usados para as sangrias. [3] [7] [8] [9] [10]
Cheng Dan’an também é responsável pela introdução de um novo tipo de agulha que irá substituir os modelos anteriores. Em vez das agulhas grossas, a prática desta terapia usará, exclusivamente, o uso das agulhas filiformes que hoje associamos à acupunctura contemporânea. [7] [8]
A reforma de Cheng Dan’an será um sucesso. A escola de acupunctura que Dan’an fundou na China e os seus 3 livros sobre o tema permanecerão uma referência para a prática da acupunctura até hoje. Dan’an serviu nos comités nacionais com intuito de introduzir reformas na educação e política médica após a Revolução Comunista em 1949. [3] [9]
Em 1950 Cheng Dan’an terá abandonado a ideia da eficácia funcionar apenas através dos nervos, tendo atribuido a eficácia ao poder do Qi e ao estímulo dos nervos. [9]
É no seguimento da Revolução Comunista em 1949 e à tentativa ideológica de ressuscitar uma prática nacional capaz de providenciar um sistema de saúde barato para grande parte da população que a Medicina Tradicional Chinesa, incorporando agora a acupunctura reformada por Dan’an, ganha um verdadeiro fôlego. [1] [3] [5] [6]
Numa nota curiosa, a acupunctura auricular (feita exclusivamente na orelha) foi inventada por um francês em 1957. [11]
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No Ocidente
Durante o século XIX na Europa houve algumas tentativas de aliar o mecanismo da acupunctura com as descobertas científicas da época, substituindo-se o conceito oriental de Qi com a electricidade no corpo. Ainda no século XIX a Acupunctura continuou a gerar bastante curiosidade no mundo ocidental, chegando a ser publicado em 1836 na Lancet um estudo sobre a eficácia do tratamento. No entanto, pouco depois o interesse pela prática diminui, provavelmente como reflexo de algum preconceito em relação à China durante as guerras do Ópio. [5]
É só após a visita à China feita por Henry Kissinger em 1971, como preparação para a visita histórica de Nixon, que a acupunctura merece uma atenção séria no mundo ocidental. Um dos jornalistas que acompanhava a comitiva, James Reston sofreu um ataque de apendicite durante a visita, sendo obrigado a recorrer a cirurgia no hospital Anti-imperial em Pequim. Após a operação, tendo ainda dores, foi tratado com acupunctura, “que teve o efeito de distrair a atenção de Reston do abdómen para o local onde estava a ser inserida a agulha”. A experiência foi relatada num artigo publicado pelo New York Times a 26 de Julho de 1971. [5] [12]
A leitura que se fez do artigo em questão provocou uma verdadeira onda de curiosidade e enganos que se prolongam até aos nossos dias. Notícias de cirurgias feitas usando apenas acupunctura em substituição de anestesia começaram a ser recorrentes. Estes feitos, credibilizados por relatos feitos por médicos norte-americanos, tiveram um efeito muito positivo e imediato na popularização da acupunctura nos Estados Unidos. [5] [13]
Gradualmente começou a ser notório que os relatos e os vídeos que demonstravam pacientes a serem operados com recurso a acupunctura como anestesia eram o resultado de observações ingénuas de médicos e observadores ocidentais não habituados à manipulação e à propaganda política. [5] [14] [15] Não obstante, é possível ainda hoje encontrar vários relatos acríticos e publicidade sem fundamento sobre a existência da “anestesia feita por acupunctura”.
A popularidade da Acupunctura está ligada também ao clima dos anos 60 e 70 – a ideologia hippie, ao novo culto pelo oriente, a ressurreição da mística oriental, do oculto e também uma profunda imersão no pensamento pós-moderno que tende a ver a ciência como apenas um discurso sobre realidade como todos os outros. [7b]
Conclusão
A Acupunctura, tal como a conhecemos na actualidade, está longe de ser uma terapia milenar. Aparenta, no entanto, ter uma origem nas concepções vitalistas que percorreram todo o globo desde o Neolítico. Nascida dos conceitos da astromedicina e englobando a prática das sangrias, sofreu uma grande transformação durante o século XX e permanece ainda hoje envolta em equívocos.
Sobre esta evolução aqui proposta, recomendo a leitura do artigo escrito por Ben Kavoussi The Untold Story of Acupuncture.
Estes dois artigos na COMCEPT debruçaram-se apenas sobre a origem e evolução desta terapia. Sobre a eficácia do tratamento, recomendo a leitura do artigo do João Coutinho, Um olhar céptico sobre a Acupunctura.
Fontes:
[1] A Brief History of Acupuncture
[2] Acupuncture Points and meridians do not exist
[3] The Development of Modern Chinese Acupuncture and Why It Matters to Us in the West
[4] On acupuncture
[5] Trick or Treatment, “Acupuncture“, Edzard Ernst, Simon Singh
[7] Astrology with Needles é um excerto de um artigo que Ben Kavoussi escreveu para a revista Focus on Alternative and Complementary Therapies, 2009 com o nome “The Untold Story of Acupuncture”. O artigo completo, embora sem as devidas referências pode ser lido no blog [7b] DeQuackwatch
[8] The Acupuncture and Fasciae Fallacy
[9] Cheng Danan
[10] Bleeding Peripheral Points
[11] History of Ear Acupuncture
[12] Now, Let Me Tell You About My Appendectomy in Peking…
[13] Questioning Dr. Isadore Rosenfeld’s China Acupuncture Story
[14] Acupuncture Anesthesia– A proclamation of Chairman Mao I
[15] Acupuncture-anesthesia-redux
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13 Comments
Cruzes canhoto. Eu não percebo quase nada sobre a acupunctura mas o que sei é suficiente para afirmar que o artigo é um atentado e uma deturpação da acupunctura. Só faltou dizer que ela apareceu o mês passado. E a aurículoterapia foi inventada por um europeu?!? Claro, e o fado foi inventado por um marciano. E Qi em vez de Chi? Não terá sido o Nixon que inventou a terapia? E que a levou para a lua? Sangria na acupunctura? Que confusão vai nessa cabecinha medieval. Artigo para esquecer por falta de fundamento.
Caro/a Dragan
A opção pelo Qi em vez do Chi deve-se ao seu uso mais frequente nas fontes que consultei. É também usado em Portugal nesta forma por alguns praticantes de acupunctura.
A aurículoterapia foi criada por um francês Paul Nogier nos anos 50 – Pode fazer uma procura no google através deste nome, ou então ver a referência em hyperlink neste artigo.
É bastante plausível que a origem da acupunctura tenha surgido da prática da sangria. Para além das referências neste e no primeiro artigo que escrevi sobre o tema, é quase certo que o tipo de agulhas usado pela acupunctura antes do século XX eram muito diferentes daquelas da actualidade. Uma coisa é certa – elas nunca poderiam ser de inox antes do século XIX.
Parece ser um facto que a reforma de Cheng Dan’an nos anos 30 tenha afastado os pontos de acupunctura do sistema vascular para a localização actual.
Até poderia conceder que esta é uma hipótese e não uma certeza (julgo que tenha sido clara nesta ideia). No entanto, está longe de não ter fundamento. Uma leitura pelos artigos que estão colocados no final do artigo e pode verificar onde me baseio para ter escrito este texto.
Nossa que confusão, sabia que a aurículoterapia existe desde Huangli Neijing ou seja desde aprox. 200 AC?
E sabia que em português se diz Chi e não Qi? Qi é dos américas que não sabem traduzir nada de jeito?
E sabia que existe a aurículoterapia chinesa e a aurículoterapia francesa, esta última só muito recentemente?
Nem vou alongar-me noutros erros de palmatória…
Enfim, um cuidado ao copiar não teria sido má ideia.
Cara Joana ou Dragan (já que escrevem do mesmo computador)
Consegue dar-me uma referência específica da auriculoterapia nos textos Huangli Neijing?
Para além de sofrerem de personalidade múltipla os caros comentadores sofrem de uma aparente inabilidade de oferecer fontes para as coisas que dizem. Peço-lhe por favor que utilize sempre o mesmo nome se quiser manter uma conversa séria.
As fontes utilizadas neste texto estão todas indicadas. Numa pesquisa rápida é fácil encontrar vários blogs e sites que dizem que as primeiras referências à acupunctura auricular vêm do texto de Huangdi Neijing, possivelmente numa tentativa de formar um argumento favorável da antiguidade (que não é mais do que uma falácia e uma técnica de marketing barata). No entanto são alegações com pouca base factual, o texto refere a orelha e a sua hipotética conexão a vários órgãos (especialmente os rins), mas era usada essencialmente como ferramenta de diagnóstico e não na prática da acupunctura (ver aqui também, é um livro feito por praticantes de acupunctura auricular, a não ser quer queria duvidar deles também). Tanto que só depois de Paul Nogier ter inventado a acupunctura auricular nos anos 50, é que esta foi oficialmente introduzida na medicina tradicional chinesa. Portanto, não existe uma verdadeira “auriculoterapia” chinesa, pelo menos não antes da francesa.
Ainda assim, mesmo que existam casos anteriores de praticas terapêuticas que envolvessem espetar agulhas nas orelhas, e não descarto que existissem, até noutras culturas, a verdade é que teriam pouco a ver com a acupunctura auricular tal como a conhecemos e é praticada hoje em dia. Que é disso que se está a falar. Além disso, será que basta utilizar agulhas ou outros objectos semelhantes para algo se designar automaticamente de acupunctura?
As grafias são várias, não creio que exista nenhuma oficial, pelo menos em nenhum dicionário que eu tenha visto (mas se me mostrar um que o diga eu mudo de opinião). Tanto quanto sei é possível usar Qi, Ki, Chi, Ch’i. Mas se preferir também pode usar a grafia tradicional chinesa 氣. Ainda assim falho em ver a real importância dessa observação.
Só posso dizer o pouco que sei sobre o assunto como cliente da acupuntura e de agulhas na orelha funciona. Perguntei ao acupuntor que é chinesa e me disse que tem milhares de anos e quanto a francesa tem poucas decadas. Confio nela por já me ter curado as diores e outras maleitas da coluna, o resto é conversa de egos. Tive estas maleitas durante anos e a medicina convencional e química em conjunto com a ciencia não encontraram solução alguma para os meus problemas. Já a MTC curou estas mesmas maleitas e doenças em pouco tempo e isto é que é relevante para mim, o resto é conversa da cîencia perante a qual tenho montes de ceticismo.
Quanto ao título se quiserem ser coerentes será este como elementar, Acupuntura é uma prática milenar!
Caro Du Lecker
Se o seu acupunctor lhe disse que é milenar, é provavel que lhe tenha mentido. Que se espetavam agulhas grossas nas orelhas, até é bem provável, mas ela não seria na forma que se entende como auriculoterapia.
Se apenas aquilo que sabe sobre o assunto é sendo cliente e por ter usado a terapia, isso não nos diz muito sobre a antiguidade da prática. Mas novamente, não é por ser antiga que ela é mais eficaz ou não.
Caro(a) Du Lecker,
Tem razão nessa parte dos egos. Isso é realmente um problema que tentamos combater aqui. Antes de desconfiarmos dos outros é boa prática desconfiarmos primeiro de nós mesmos, uma vez que somos extremamente fáceis de enganar, no entanto, o nosso ego é algo que dificulta a aceitação desse simples facto da condição humana. Já foi dada bibliografia, inclusive de praticantes de acupunctura auricular, em como esta só surgiu na China depois de ter sido inventada na França nos anos 50. Se quiser continuar a negar isso está no seu direito. Mas se quer realmente saber a verdade e não apenas empreender uma “conversa de egos” peço-lhe que veja a bibliografia e que considere a possibilidade de o seu acupunctor estar pelo menos enganado, algo mais provável do que vários autores, incluindo outros acupunctores, estarem enganados, não será?
A acupunctura corporal já poderá ser considerada milenar, se chamarmos de acupunctura qualquer prática que utilize agulhas. Isto apesar de ter sido substancialmente diferente do que é praticado hoje em dia, e apesar de a antiguidade não nos dizer absolutamente nada acerca da sua eficácia. A única coisa que a antiguidade nos diz é foi desenvolvida num tempo onde imperava a ignorância total sobre o funcionamento do corpo humano e os mecanismos de diversas doenças. Visto por esta perspectiva esse argumento popular deixa de soar assim tão bem…
Se funcionou consigo e está satisfeito, ainda bem. Deverá contudo compreender que por mais valiosa que essa experiência pessoal seja para si, pouco significado terá para convencer quem sabe o quão falíveis nós somos e a importância que os estudos científicos possuem na resolução desse problema.
E resta ainda acrescentar que, se o que se conhece das fontes históricas (aqui citadas no texto), pode ser considerado acupunctura, então ela não pode ser considerada como tradicionalmente chinesa (ou oriental), já que as práticas “médicas” que recorriam a agulhas e punções eram comuns em todo o mundo (do qual chegaram fontes históricas à atualidade), incluindo as citadas tatuagens rituais.
Neste post, por exemplo, pode também ficar a perceber o que é a evidência anedótica (os relatos pessoais) e porque é que esta não serve como prova científica, mas apenas como ponto de partida para investigações mais profundas:
https://comcept.org/2012/04/29/evidencia-anedotica/
Boa noite,
Visto o tema das origens da acupunctura (https://comcept.org/2012/12/11/as-origens-da-acupunctura/) ser em muitos aspectos coincidente com os tópicos aqui abordados, por falta de tempo optei por comentar o assunto apenas na outra publicação. Agradeço a vossa compreensão.
Cumprimentos,
Pedro Albuquerque