Os males da Indústria farmacêutica

O novo livro de Ben Goldacre, Bad Pharma é uma apresentação dos erros deliberados, da ocultação e manipulação de dados perpetuada pela indústria farmacêutica.

GOLDACRE, BEN, Bad Pharma, London, Fourth Estate, 2012

Um meme recorrente em comentários de jornais, blogs ou sites a propósito de qualquer assunto sobre saúde é o ataque à Indústria farmacêutica. Quem ousa, por exemplo, criticar terapias não comprovadas, ou suplementos alimentares, ouve, invariavelmente uma repetição dos mesmos argumentos: “Quem faz a crítica é pago pela indústria”, ou “ a indústria está a deliberadamente a esconder a substância natural, sem efeitos secundários para curar todas as maleitas”; “a indústria farmacêutica está a tornar-nos cada vez mais doentes para poder vender mais medicamentos”.

O novo livro de Ben Goldacre, Bad Pharma – how drug companies mislead doctors and harm patients, ainda sem edição portuguesa, é exactamente o contrário dos comentários avulso, repetidos sem um pingo de reflexão sobre os verdadeiros e graves problemas que rodeiam a indústria farmacêutica. Longe de ser uma intuição, é uma apresentação de factos, recolhida de forma sistemática e através de estudos recentes, dos erros deliberados, da ocultação e manipulação de dados perpetuada pela indústria.

IMG_3105
Foto: L Abrantes

Bad Pharma, com 430 páginas, parece um comprimido difícil de engolir (a capa assemelha-se à caixa de um medicamento). Mas mesmo sendo um tópico dificilmente adequado a uma leitura ligeira, a escrita é bastante clara, acessível e – na minha opinião – é nitidamente uma evolução quanto ao primeiro livro de Goldacre.

O livro foi claramente escrito tendo em vista o público em geral e não apenas os profissionais de saúde, o que demonstra até que ponto o autor considera que todos nós, enquanto potenciais doentes ou apenas enquanto membros responsáveis de uma sociedade, temos de estar informados destes problemas. No início do livro, nota-se a preocupação em explicar, de forma clara e para o público leigo, os métodos de avaliação de medicamentos e como essas avaliações são fundamentais para detectar potenciais riscos. A grande maioria das referências e dos estudos abordados são de acesso gratuito, numa óbvia declaração que o que importa é a transparência.

Ben Goldacre parte do princípio que “não existe medicina sem medicamentos” e longe de assumir imediatamente que a Indústria farmacêutica é o demónio encarnado, reconhece que essa indústria foi responsável por medicamentos que aliviaram e prolongaram a vida de milhares de pessoas ao longo dos últimos 60 anos.

O segundo pressuposto de Goldacre (ou de qualquer proponente de medicina baseada na evidência), é que a medicina é uma avaliação rigorosa dos benefícios versus riscos. E sem informação sobre os reais riscos e reais benefícios de um medicamento não é possível fazer boa medicina.

E aqui reside o busílis da questão: O primeiro problema apontado, de longe o maior problema de todos, é a não publicação de todos estudos feitos sobre um determinado medicamento.

Num dos exemplos fornecidos por Ben Goldacre, tomamos conhecimento que em 2008 um grupo de investigadores independentes resolveu investigar os estudos clínicos sobre anti-depressivos saídos para o mercado norte-americano entre 1987 e 2004. Estavam contabilizados apenas aqueles que foram submetidos para obter a autorização da FDA, ou seja, o número de estudos recolhidos estava longe de representar a totalidade dos estudos. Dos 74 estudos, 38 apresentavam estudos favoráveis aos medicamentos; 36 mostravam resultados negativos. Quando foram analisados quantos desses estudos foram publicados e tornados acessíveis a médicos e a pacientes, o resultado não foi animador: 37 dos 38 estudos favoráveis foram publicados; dos estudos negativos, pelo contrário, apenas 3 foram publicados. Temos ainda a informação que desses 33 estudos negativos, 11 apareceram mais tarde na literatura médica, mas escritos como se o medicamento fosse um sucesso. 22 estudos negativos, desapareceram totalmente.

Não é um caso exclusivo da medicina. Mas é provavelmente na medicina que estes casos de viés têm mais consequências, pois estamos a falar de tomadas de decisão que têm impacto na saúde e na vida ou morte de milhares de pessoas. Decisões que são feitas com base em informação incompleta, enviesada e muitas enganadora.

Um outro relato assustador combina a acção da Indústria com a das entidades reguladoras que protegem, antes de mais, os interesses comerciais dos laboratórios. Em 2007 investigadores da Nordic Cochrane Centre planeavam fazer uma revisão sistemática de dois medicamentos para a obesidade. Para tal, tendo em conta que nem todos os estudos são publicados, pediram o acesso aos estudos à EMA – European Medicine Association – já que, por lei, os laboratórios são obrigados a apresentar todos os relatórios dos estudos para um novo medicamento ser aprovado. O acesso foi negado porque isso entraria em conflito com os interesses comerciais e com a propriedade intelectual do laboratório. Numa disputa que durou cerca de 2 anos e tendo um dos medicamentos em questão ter sido retirado do mercado por graves efeitos secundários (ligado ao aumento de risco de suicídio), a entidade reguladora, aquela que deveria antes de mais proteger os pacientes, disponibilizou finalmente um documento sobre um dos medicamentos e que pode ser “consultado” aqui (a sério, abram o link, porque é tão absurdo que as palavras não chegam para descrever).

A indústria farmacêutica afirma que é um dos sectores mais regulamentados do mundo. Mas mesmo fechando os olhos à má ou fraca actuação dos organismos reguladores (o que não aconselho, obviamente), existem maneiras de contornar o sistema e as entidades reguladoras não estão ou não querem estar atentas a esses mecanismos, que na maioria dos casos são perfeitamente legais.

Um capítulo inteiro é dedicado às metodologias (tanto no protocolo como na análise) usadas nos ensaios clínicos de forma a tornar um novo medicamento positivo aos olhos daqueles menos atentos: Por exemplo, através da selecção dos pacientes que mais poderão beneficiar ou apresentar resultados positivos.

Goldacre considera o Marketing o segundo grande problema da indústria, dedicando o último capítulo exclusivamente a esta questão. Na minha opinião, a questão do marketing é talvez a mais conhecida do consumidor comum. É praticamente do conhecimento geral as acções de marketing agressivo junto dos médicos, seja através de visitas constantes por parte de delegados de informação médica, seja através de congressos e palestras internacionais. Não deixa de ser, no entanto, importante tomar conhecimento como a indústria se aproxima dos médicos, mesmo ainda em fase de formação, e a maneira como criam perfis daqueles mais ou menos susceptíveis de serem influenciados.

Muitos outros problemas são identificados por Goldacre: Os conflitos de interesses não discriminados; Questões éticas, como a proliferação de estudos clínicos nos países em vias de desenvolvimento; Escrita fantasma; Formação médica suplementar patrocinada pela indústria.

Bad Pharma apresenta no final de cada capítulo, soluções para resolver os problemas descritos – na sua grande maioria, absurdamente simples. Recomendações e passos que podem ser dados por todos nós e, em especial, pelos profissionais da área.

E é aqui que reside a força do livro. Esta é uma crítica construtiva que pretende ir muito mais além do que a simples acusação. A publicação de Bad Pharma foi seguida pela criação de uma petição online, já mencionada na Comcept e pela criação de uma pressão internacional para forçar a obrigatoriedade de publicação de todos os estudos clínicos. É difícil ficar indiferente perante a leitura deste livro, não temos de nos sentir impotentes perante a gravidade aqui descrita. Existem possibilidades para alterar as coisas: Fazendo pressão junto das pessoas que têm o verdadeiro poder de decisão.

Um livro obrigatório!

.

Ben Goldacre é um médico britânico, autor do livro Ciência da Treta editado pela Bizâncio, no original, Bad Science. Escreve regularmente sobre má ciência e má divulgação da ciência nos media no seu blog Bad Science.

.

11 Comments

  1. Era bom que a Bizâncio ou outra editora se interessasse por traduzir também este livro para português para assim chegar a todos. Essa questão do marketing é uma coisa que também acho preocupante, afinal os médicos são apenas humanos. Há necessidade hoje em dia de os médicos receberem visitas de delegados de saúde com o pretexto de dar a conhecer novos medicamentos, quando existem listagens informatizadas de todos os medicamentos no mercado? Tenho dúvidas, acho que serve apenas para aumentar as probabilidades de corrupção pessoal.

    1. Ben Goldacre sugere simplesmente que os médicos devem deixar de receber visitas de Delegados de informação médica. Que devem ser, se possível, banidos das clínicas e hospitais.

      Sugere também a declaração total de prendas ou outros items – o que talvez seja difícil de implementar.

      No Cépticos com Vox sobre Cepticismo e Jornalismo, um dos nossos convidados falou no lançamento do livro ainda para este ano. Mas não me recordo qual a editora.

      1. Sou médico de família. Desde o meu internato que não recebo delegados de informação médica nem nenhuma “prendinha” da indústria farmacêutica (IF). Todos me perguntam como faço para ir a congressos, porque claro está que os preços das inscrições e viagens aos congressos são proibitivos para um ordenado médio de um médico dedicado exclusivamente ao SNS. A resposta é simples. Não vou. A maior parte deles não passam de feiras de vendas de medicamentos e palestras encomendadas pela IF. Aqueles que considero que valem a pena e aos quais posso ir, pago-os eu.
        Não receber DIM foi a melhor decisão na minha vida profissional. Pena é que os nossos decisores não actuem com firmeza neste tema. Proibir DIM nos locais do SNS (existe bibliografia que revela que recebe-los está associada a uma prática médica menos baseada na melhor evidência, mais dispendiosa e com efeitos de saúde deletéreos – ver healthyskepticism.org) e apoiar congressos científicos isentos para que as inscrições baixem.
        Já agora, existe em Portugal legislação que determina que todos os bens recebidos pela IF devem ser declarados num portal criado para o efeito na página online do Infarmed (infarmed.pt)

          1. Há cada vez mais médicos a seguir o mesmo rumo descrito pelo David Rodrigues. Não se trata de converter a indústria farmacêutica no Grande Satã: apenas uma forma de manter a independência crítica e de não se perder tempo. E haverá, seguramente, formas inteligentes de relação entre os profissionais de saúde e a indústria em que as pessoas saiam beneficiadas.

            Excelente recensão, já agora!

          2. Sem dúvida!
            Não duvido que a IF tem um papel fundamental na medicina, na ciência e em ultima análise na evolução da sociedade.
            Apenas não concordo com que assumam um papel tão importante na educação médica e dos médicos. Essa função não é deles. É prejudicial para os doentes, para os médicos, para o SNS. Só não é para a própria IF…
            A educação contínua, isenta e baseada na melhor evidência disponível dos médicos deveria ser uma preocupação do próprio Ministério da Saúde apoiado na Academia. Porque trata-se de optimizar a eficiência do próprio SNS, trata-se de oferecer a melhor medicina à população sem que isso implique um buraco financeiro do tamanho do país.
            Agora se a ideia do MS de educação contínua, isenta e baseada na melhor evidência disponível é a emissão de normas a granel por parte da DGS, a maior parte delas com erros metodológicos e de conteúdo importantes… vamos mal.

        1. Parabéns pela sua atitude!

          Esses “patrocínios” para assistir aos congressos médicos sempre foram algo que me pareceu estranho, porque desconheco que isso ocorra nas outras áreas científicas.
          Efectivamente, seria bom que os congressos na área biomédica fossem como os demais (pelo menos aqueles que me são familiares): local de partilha de conhecimento e também de escrutínio…e alguma que outra exibição de egos, claro! 🙂

  2. “37 dos 38 estudos favoráveis foram publicados; dos estudos negativos, pelo contrário, apenas 3 foram publicados. Temos ainda a informação que desses 33 estudos negativos, 11 apareceram mais tarde na literatura médica, mas escritos como se o medicamento fosse um sucesso. 22 estudos negativos, desapareceram totalmente. ”

    os estudos negativos de medicamentos postos no mercado aumentam a possibilidade de concretização da responsabilidade legal a todos os níveis de quem comercializa. se e quando algo correr mal pode haver mais processos se o público estiver mais informado. quem comercializa um produto final, pelo menos na UE, absorve a responsabilidade de todas as pessoas jurídicas existentes anteriormente e envolvidas na produção. de todas. ganha também direito de regresso relativamente a quase tudo, mas é ele que responde em primeira linha perante o consumidor defraudado – penal, civilmente, o que for.

    p.s. o teu novo kindle já não é keyboard? traidora.
    sabes onde posso arranjar esse .mobi?

    1. Assina a petição e escreve aos deputados a pedir a publicação de todos os estudos!!

      O meu kindle keyboard caiu e morreu. Tive de pedir um novo e na altura já não havia o keyboard para venda.

      PM soon!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Procurar
Outros artigos
Votação para o Prémio Unicórnio Voador 2023
Comcept
Quando o marketing se apropria dos conceitos “Natural” e “Tecnológico”
João L. Monteiro
FORAM EXIBIDOS SERES EXTRATERRESTRES NO MÉXICO?
João L. Monteiro