A Ciência e a Homeopatia I – Breve História da Homeopatia

Uma breve história da Homeopatia no mundo e em Portugal e quais os seus principais fundamentos.

Celebra-se esta semana, de 14 a 21 de Junho, a Semana da Consciencialização da Homeopatia (no original: Homeopathy Awareness Week), promovida pela organização inglesa The Society of Homeopaths. Esta ocasião parece-nos ser ideal para iniciar uma série de posts dedicados a esta variedade de pseudo-medicina (ou medicina alternativa, como gostam de lhe chamar os seus adeptos). E vamos começar pelo princípio: pela sua história e fundamentos.

Estes posts serão, em grande medida, baseados no artigo Homeopathy and Science: A Closer Look, da autoria de David W. Ramey, M. Wagner, R. H. Imrie e Victor J. Stenger [1]. A Comcept agradece, portanto, aos autores a autorização para traduzir e publicar vários trechos deste texto.

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Desde o seu nascimento, há mais de 200 anos, a homeopatia tem tido momentos de maior ou menor popularidade. O aparente ressurgimento nos nossos dias reavivou a discussão sobre se os preparados homeopáticos são eficazes no tratamento de alguma doença ou se não passam de elaborados placebos. A discussão decorre, não só no campo da medicina humana mas também na veterinária, e parece enfrentar os proponentes da homeopatia com aqueles que apenas confiam em provas firmes de eficácia antes de adoptarem qualquer tipo de terapia.

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História da Homeopatia

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Museum für saechsische Vaterlandskunde
Samuel Hahnemann (Crédito: Museum für saechsische Vaterlandskunde, 1837)

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O médico alemão Samuel Hahnemann (1755-1843) é geralmente reconhecido como sendo o fundador e impulsionador da homeopatia, embora alguns dos  conceitos por ele usados tenham aparecido bem mais cedo na história da medicina.[2] Descontente com o estado da medicina naquela época, que incluía sangrias, purgas, aplicação de ventosas e doses excessivas de mercúrio, ele abandonou a prática médica em 1782 e começou a traduzir textos sobre medicina e química. Foi durante esta altura que ele aparentemente começou a questionar seriamente os mecanismos de acção dos medicamentos propostos pelos seus contemporâneos.
Hahnemann seguia uma tradição que via a doença como sendo um problema da força vital ou do espírito (corrente conhecida como vitalismo). O conceito de espírito vital parece ser uma das especulações mais antigas da história médica e forças semelhantes constituem a base para as propostas de vários tipos de práticas médicas metafísicas. Alegadamente, é uma “força” imaterial que sustenta a vida e para a qual não há qualquer evidência objectiva.[3] Segundo Hahnemann,

“As causas das nossas maleitas não podem ser materiais, visto que qualquer substância material alheia, por inócua que nos pareça ser, se for introduzida nos nossos vasos sanguíneos, é rapidamente rejeitada pela força vital, como se de um veneno se tratasse…resumindo, nenhuma doença é causada por qualquer substância material, mas toda a doença é apenas e sempre uma peculiar, virtual e dinâmica perturbação da saúde.”[4]

Consistente com esta filosofia é também a crença de que é mais importante prestar atenção aos sintomas do que às causas externas da doença. Conhecendo os sintomas específicos da doença, pode-se depois simplesmente estabelecer o tratamento procurando uma substância ou substâncias que induziram os mesmos sintomas num indivíduo saudável. É nesta base que se assenta o “Princípio da Similitude” de Hahnemann. Naquela altura, os trabalhos de Pasteur e Koch sobre inoculações feitas com pequenas quantidades de agentes microbianos enfraquecidos parecia apoiar esta ideia.

Hahnemann e os seus seguidores começaram então a testar neles próprios os efeitos de quase 100 substâncias, um processo conhecido como “prova”. O procedimento típico consistia na ingestão de uma pequena quantidade de uma determinada substância por uma pessoa saudável; depois, essa pessoa devia cuidadosamente tentar notar qualquer reacção ou sintoma que ocorressem (incluindo reacções emocionais ou mentais). Através deste método, Hahnemann e os seus seguidores “provavam” que essa substância era um remédio eficaz para um sintoma em particular. Deveria ser incontestável que tal método de determinação da eficácia de um tratamento seja implausível e, no mínimo, sensível ao poder da sugestão. De facto, num estudo controlado, sujeitos saudáveis relataram sintomas semelhantes quer tomassem uma diluição homeopática de beladona ou um placebo.[5]

Baixo relevo do Monumento a Samuel Hahnemann em Scott Circle (Washington, EUA) (Crédito: takomabibelot – Flickr)

No entanto, a colecção destas experiências transformou-se na base de um compêndio chamado Materia Medica. Como algumas das substâncias testadas eram tóxicas (como o sumagre venenoso, a estriquinina e vários venenos de serpentes), fazia sentido ingerir quantidades diminutas durante as “provas”. Esta pode ser a fonte do princípio homeopático das “diluições infinitesimais”, segundo o qual as soluções mais diluídas são, alegadamente, as mais potentes.

A origem do princípio da “potencialização” (ou “dinamização”) é mais obscura. Supostamente, a potencialização faz com que as substâncias inertes e diluídas passem a ser activas devido à libertação da sua energia. Segundo Hahnemann:

“As potencializações homeopáticas são os processos pelos quais as propriedades medicinais das drogas, que estão num estado latente na substância em bruto, são excitadas e adquirem a capacidade de actuar espiritualmente sobre as forças vitais.”[6]

A simples diluição de um medicamento não é suficiente para que se dê a cura. Para alcançar a potencialização, após cada diluição sucessiva de 1 a 9 (“D”) ou de 1 a 100 (“C”), a solução deve ser agitada vigorosamente (o processo é conhecido como sucussão). No caso das substâncias em pó, estas devem ser vigorosamente moídas (trituração). A potencialização supostamente liberta a energia da substância que está a ser usada no tratamento e esta energia libertada supostamente mantém-se, mesmo nas doses mais baixas.

Hahnemann acreditava que os remédios homeopáticos deveriam ser apropriadamente prescritos de modo individual, para cada tipo de corpo e personalidade, com base nas antigas teorias humorais de Galeno. De acordo com estas teorias, existiam quatro tipos de corpos e personalidades, dependendo do “humor” corporal que predominava: sangue (optimista, bondoso e volátil), bílis negra (melancólico, triste), bílis amarela (colérico, rápido na ira e na acção) e fleuma (fleumático, pachorrento e apático). Para além de descrever vários tipos básicos de corpo, ele também sugeriu que existiriam as correspondentes causas primárias de doenças agudas e crónicas , a que chamou “miasmas”. O primeiro miasma, conhecido como “psora” (comichão) refere-se a uma susceptibilidade geral a doenças e pode ser considerado a fonte de todas as doenças crónicas. Os outros dois miasmas da teoria homeopática são as doenças venéreas sífilis e sicose (gonorreia). Juntas, estas três condições eram consideradas a causa de pelo menos 80% de todas as doenças crónicas.

A homeopatia fez várias contribuições indirectas importantes para a prática da medicina. Na época em que se desenvolveu, os tratamentos médicos eram muitas vezes mais perigosos do que a doença que tentavam tratar. Na verdade, a homeopatia pode ter ajudado a acelerar o abandono de tais tratamentos. A homeopatia foi a fonte de inspiração para medicamentos úteis como a nitroglicerina[7] e o acónito.[8] Cientistas como Joseph Lister e Sidney Ringer reconheceram que, por causa da homeopatia, chegaram a descobertas farmacológicas importantes.[9] Também se atribui crédito à homeopatia  por ter, inicialmente, apoiado ensaios clínicos com grupos controlo, protocolos quantitativos e sistemáticos e com recurso à estatística.[10]

Do ponto de vista da medicina veterinária, é curioso que o Hahnemann não fez qualquer trabalho com animais. A psora, a sífilis e a gonorreia não são doenças reconhecidas nos animais. Dadas as variações interespecíficas nas reacções a várias substâncias farmacológicas, a falácia da prescrição de medicamentos para animais com base nos sintomas que eles provocam nas pessoas parece óbvia. O conceito da prescrição de medicamentos baseada nos tipos de corpo e personalidades pareceria também ser particularmente difícil de aplicar a animais.

Deveria ser óbvio que as premissas nas quais se baseia o trabalho de Hahnemann dificilmente podem ser apoiadas pelo conhecimento actual. Sob um ponto de vista estritamente hipotético, é possível que Hahnemann tenha chegado à solução acertada a partir de bases erradas. Contudo, embora as críticas baseadas apenas na origem da filosofia possam não ser completamente condenatórias, são, pelo menos, instrutivas.

Mas esses aspectos serão explorados nos próximos posts…

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A Homeopatia em Portugal

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Yann de Morais Araújo inclui a homeopatia nas artes de curar românticas do século XVIII [11],

“que ia de encontro à insatisfação prática e real dos doentes, respondendo simultaneamente a dúvidas e angústias de médicos e terapeutas”.

Manuel da Silva Passos, mais conhecido como Passos Manuel.
Manuel da Silva Passos, mais conhecido como Passos Manuel.

Em Portugal, várias figuras públicas de relevo, aderiram a esta alternativa às práticas médicas vigentes, vistas como frias e cruéis (possivelmente, com razão). Entre estas figuras, encontrava-se o político Passos Manuel (1801-1862), aparentemente afligido desde a infância por uma doença sem remédio, que foi reformador do ensino médico, cirúrgico e farmacêutico português. Passos Manuel recorreria aos serviços de António Maria dos Santos Brilhante, um dos mais famosos vitalistas e homeopatas portugueses. Acabaria por ser um dos principais defensores públicos da homeopatia e de Hahnemann em Portugal.

O Duque de Saldanha (1790-1876) foi também outro defensor nacional desta arte de curar, publicando a obra “O Estado da Medicina em 1858” [11, 12], manifesto onde ataca a “medicina das escolas”, a alopatática, que designa como sendo

“mixto informe de ideias inexactas, de observações pueris, de meios illusorios, de formulas tão bisarramente concebidas como fastidiosamente colligidas, não tendo principios fixos, sendo a sua therapeutica apenas uma colleção de hypotheses imaginadas pelos medicos em todos os tempos”.

O Duque de Saldanha é também responsável pela criação do Consultorio Homeopathico Lisbonense e pela Gazeta Homeopathica.

Destaca-se ainda o importantíssimo apoio do Conde de Ferreira (1782-1866), que se empenhou em proteger e financiar o Consultório Homeopathico Portuense e a Gazeta Homeopathica Portuense, para que os pobres do Porto tivessem assistência homeopática gratuita. Para tal, este Consultório dirigido por António Ferreira Moutinho, estava dotado do apoio anual de 150$000 réis. Deixou ainda em testamento uma renda de 20$000 réis para que se mantivesse uma enfermaria no hospital da Misericórdia de Santo António do Porto. Esta unidade de caridade apenas deixaria de funcionar na década de 1950, por falta de substitutos para os idosos médicos homeopatas que então se reformaram.

O apoio destas e de outras figuras da alta sociedade portuguesa leva a que, em 1859, Hahnemann seja homenageado pela Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, que o acolhe como membro honorário de Primeira Classe. [11, 12] Hahnemann era enaltecido como o “Hipócrates do Norte”.

Existiam, então, em Portugal duas facções na comunidade médico-farmacêutica: a que era a favor e a que estava contra a homeopatia. Um dos principais detractores, João Brignoli, afirmava que a homeopatia “atingia os limites da mais fecunda imaginação”.

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Referências:

[1] Ramey, D. W., M. H. Wagner, R. H., Imrie & V. J. Stenger, 1999. Homeopathy and Science: A Closer Look. Technology 6(1): 95-105.

[2] Ullman, D., 1998. Homeopathic Medicine: Principles and Research. In: Complementary and Alternative Veterinary Medicine, Principles and Practice (eds. A. Schoen & S. Wynn), Mosby, Inc., St. Louis, EUA.

[3] Raso, J., 1998. The Expanded Dictionary of Metaphysical Healthcare: Alternative medicine, paranormal healing and related methods. The Georgia Council Against Health Fraud, EUA.

[4] Hahnemann, S., 1960. Organon of medicine, 6a ed. M. Bhattacharyya & Co., Calcutá, Índia.

[5] Wallach, H., 1993. Does a highly diluted homeopathic drug act as a placebo in healthy volunteers? Experimental study of Belladonna 30C in a double blind crossover design – a pilot study. J. Psychosomatic Res. 37(8): 851-860.

[6] Hahnemann, S., 1846. The Chronic Diseases. Nova Iorque, EUA.

[7] Fye, W. B., 1986. Nitroglycerin: a homeopathic remedy. Circulation 73: 21-29.

[8] Haller, J. S., 1984. Aconite: a case study in doctrinal conflict and the meaning of scientific medicine. Bull. N. Y. Acad. Med. 60: 888-904.

[9] Nicholls, P. A., 1988. Homeopathy and the Medical Profession. Croom Helm, Londres, Inglaterra.

[10] Ernst, E. & T. J. Kaptchuk, 1996. Homeopathy revisited. Arch. Intern. Med. 156: 2162-2164.

[11] de Morais Araújo, Y. L. M., 2005. Heterodoxias da Arte de Curar portuguesa de oitocentos – o caso da homeopatia. Revista da Faculdade de Letras – HISTÓRIA III Série, 6: 153-167.

[12] Pombo, M. D., 2010. Modelos Terapêuticos em Movimento no Portugal do Século XIX: actores, discursos e controvérsias. Tese de Mestrado apresentada ao ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.

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