O Muro de Berlim segundo o jornal Avante! Para além da política e da ideologia, um caso de revisionismo histórico

A política e as ideologias são temas que suscitam paixões e, consequentemente, confrontos de ideias que podem chegar a ser violentos ou, simplesmente, pouco esclarecidos. Na ânsia de defender uma convicção, a verdade nem sempre é o argumento mais amiga do ponto de vista a defender pelo que se procura uma verdade alternativa ou um pequeno desvio na interpretação da realidade. As discussões que envolvem factos históricos são muito dadas a comportamentos deste tipo. Quem vilipendia os factos históricos resguarda-se usualmente na subjetividade interpretativa das ciências sociais. Mas a subjetividade não deve ser uma autoestrada para o disparate. Existem limites para a liberdade interpretativa. Existem dados que são comprovados por diversas formas, normalmente pelo cruzamento de fontes de diversas origens e de diversa natureza.

No seguimento das comemorações dos 25 anos da queda do muro de Berlim foi escrito no jornal Avante! um artigonão assinado, no qual se faz uma interpretação alternativa do que foi o muro de Berlim e do que levou à sua construção e queda. Contaminado de forma indelével pela ideologia do partido responsável pelo periódico em questão, o artigo apresenta uma versão fantasiosa do que se passou no pós-guerra, desde a década de 1960 a 1989, na cidade de Berlim. Focarei somente alguns pontos, para não correr o risco de entrar na área ideológica que pouco deveria ter que ver com a análise histórica em questão. Bem sei que qualquer interpretação estará sempre condicionada pelas convicções religiosas, filosóficas e políticas de quem interpreta, mas é particularmente grave quando tal acontece de forma consciente, com parece ser o caso.

Ao contrário do que diz o artigo, o muro não era uma estrutura defensiva. Pelo menos na aceção mais estreita do conceito. O muro de Berlim na sua versão inicial era uma mera vedação de arame farpado, por isso uma defesa pouco eficaz contra qualquer ataque militar. Na sua versão final, o muro era um complexo sistema que incluía o muro propriamente dito e, no lado da RDA, tapetes de espigões, arame farpado, alarmes e torres de vigia onde as sentinelas tinham ordem para disparar (Rottman, 2008). Era, por isso, uma estrutura desenhada para impedir cidadãos de sair da RDA. Devemos fazer notar também que Berlim encontrava-se no meio da RDA. Rodeada por território da RDA em todos os pontos cardeais. O lado ocidental não era uma ameaça militar face ao lado oriental. No máximo, o muro poderia repelir espiões e travar o contrabando, ainda que estes tivessem outros meios para contornar o muro. O muro só poderia ser considerado uma estrutura defensiva se tivéssemos em conta que a emigração para o lado ocidental de Berlim constituía uma ameaça séria para a RDA. Entre a primavera de 1949 e Agosto de 1961 terão passado 2,8 a 3 milhões de pessoas do lado oriental para o lado ocidental de Berlim, correspondendo a cerca de 16% da população da RDA (Judt, 2010). Segundo Judt, a emigração aumentou muito nos dois últimos meses antes da construção da barreira: “30 415 pessoas partiram para o Ocidente em Julho, no fim da primeira semana de Agosto de 1961 mais 21 828 tinham seguido os seus passos… ” (Judt 2010, p. 298). Com essa emigração, o país perdia mão-de-obra especializada e desbotava a sua imagem de paraíso social.

East side gallery, Berlim, 2007. Crédito: L. Abrantes
East side gallery, Berlim, 2007. Crédito: L. Abrantes

Neste sentido, não deixa de ser surpreendente como as notáveis realizações da RDA no plano social e cultural não foram suficientes para que a população quisesse de facto viver na RDA. A abertura do muro adveio de uma movimentação espontânea de milhares de pessoas, depois de um lapso de comunicação. Essas pessoas queriam SAIR do paraíso retratado neste artigo do Avante!. Ao que parece, as pessoas deram mais importância à liberdade do que à organização social e política da RDA.

Liberdade parece ser a palavra-chave. O artigo menciona sempre a RDA como um paladino da paz mundial. Um país que emprisiona os seus habitantes atrás de muros – na cidade de Berlim e na restante fronteira – e elimina quem tenta escapar pode ser considerado um país de paz?

Um Estado em paz que vivia sob constante ameaça do ocidente capitalista. É esta a imagem da RDA que o Avante! quis fazer passar. Diz o jornal que “o imperialismo nunca desistiu das suas tentativas de liquidar a RDA socialista”. Não tenho muitas dúvidas disso, mas veja-se o enquadramento histórico (Guerra fria). O lado comunista fazia esforços semelhantes face aos seus oponentes. Esta dualidade não é mencionada aqui… só mais à frente no texto. A forma como retratam esta dualidade diz muito acerca das intenções dos autores do artigo. Invocam-na unicamente na defesa da RDA.

Não contentes com tentar passar a ideia de um Estado perfeito que foi oprimido pelo Ocidente, era necessário, como é prática comum, encontrar uma legitimação histórica para a RDA enquadrando-a no seguimento de movimentos sociopolíticos e ideológicos da Europa Central. Trata-se de uma vã tentativa de mascarar o facto da RDA ter sido um protetorado soviético e dever o seu modelo político e social à ação direta da União Soviética. De facto, a RDA dificilmente poderá ser considerada herdeira de qualquer revolução ou personagem heroica. O facto de terem existido filósofos e políticos alemães de ideologia socialista não faz com que a RDA advenha dos movimentos políticos que estes geraram na Alemanha. Não foi a população alemã quem lutou pela formação da RDA. Foi uma construção soviética. Não é, por isso, surpreendente, como faz notar Michael Gehler (2011), que a emigração para a parte ocidental se tenha iniciado ainda antes da formação da RDA, quando o espectro de um país dominado pela união soviética se tornava mais provável. Em 1949 foram mesmo edificados campos de refugiados na RFA que chegaram a albergar mais de 100 000 pessoas.

Em 1989 a população alemã tentou e conseguiu abrir uma brecha no muro. O artigo menciona a “anexação forçada” da RDA pela RFA. É uma forma muito redutora e enviesada de colocar a questão. A RFA não invadiu a RDA. O movimento partiu da RDA para a RFA.

O(s) autor(es) do artigo, na falta de melhores argumentos, cede(m) à tentação de tentar chocar os leitores juntando factos e juízos referentes a acontecimentos que pouco têm que ver com a construção do muro, tais como o “criminoso” ataque ao Japão com bombas atómicas, o muro que Israel construiu na Palestina, a fronteira EUA-México, etc. Acusam, por isso, o ocidente capitalista de hipocrisia, por tolerar ou fomentar estas barreiras. Infelizmente, só é vista a hipocrisia de um lado e a culpa é sempre colocada sobre os opositores do socialismo. Se pensarmos que os eventos de Berlim ocorreram num mundo dividido em dois blocos ideologicamente distintos e ativos politica e militarmente na luta pela afirmação da sua ideologia, não percebo como se pode acusar de hipócrita um dos lados só porque prevaleceu.

A desonestidade intelectual de quem escreveu o texto encontra-se bem patente na seguinte frase: “tentativa de impor, tal como proclamado por Bush durante a Guerra do Golfo, «uma nova ordem mundial» contra os trabalhadores e contra os povos”. Embora o autor só coloque as aspas na nova ordem mundial, a frase é escrita de forma a dar a entender que o que vem a seguir é uma paráfrase do que Bush disse. Este não se referia à nova ordem mundial como sendo contra os trabalhadores e contra os povos. Isso é o Avante! que diz.

Desta forma, o Avante! apresenta uma visão muito própria de um evento e até de um período histórico muito bem documentado. Fortemente condicionado pela sua ideologia, o jornal utiliza de todos os meios para fornecer uma visão alternativa da História, contra os factos amplamente descritos em diversas fontes. Para reforçar o seu impacto sobre os leitores, associa eventos que não estão diretamente conectados e estabelece relações de causalidade sem qualquer base histórica. É razão para dizer “cuidado com as imitações”.

Referências:

Gehler, M. (2011). Three Germanies: West Germany, East Germany and the Berlin Republic. Reaktion Books.

Judt, T. (2010). Pós-Guerra, História da Europa desde 1945. Edições 70.

Rottman, G. (2008). The Berlin Wall and the Intra-German Border 1961-89. Osprey Publishing.

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