A história propagou-se por vários países, tanto na Internet como em meios de comunicação. Alegadamente, cientistas alemães descobriram que o consumo de chocolate negro, quando conjugado com uma dieta de baixo teor em hidratos de carbono, ajuda a perder peso 10% mais rápido! Os amantes de chocolate festejaram um pouco por todo o mundo. Finalmente! Uma razão para comer chocolate sem qualquer sentimento de culpa. Contudo, e antes que o leitor ferre a primeira dentada naquela tablete que tem andado a evitar, é bom que saiba que estes resultados na verdade não significam nada: como em muitas outras notícias do género, o estudo de onde saíram tem pouca ou nenhuma fundamentação.
“Eu levei milhões a pensar que o chocolate ajuda a perder peso”, confessou esta quarta-feira o jornalista de ciência John Bohannon. Ele tinha já sido responsável pelo artigo da revista Science que, em 2013, revelou que mais de metade das revistas científicas de acesso livre aceitou publicar artigos fictícios com erros grosseiros. Desta vez, o objectivo de Bohannon foi o de demonstrar o quão fácil é transformar um mau exemplo de ciência em grandes manchetes sobre dietas e a influência dos alimentos na saúde.
O mais interessante deste caso é que John Bohannon não inventou ou falsificou os resultados do estudo, foi um estudo 100% autêntico e não muito diferente de outros que todos os anos são publicados na área da nutrição: foram recrutados participantes na Alemanha, foi realizado um ensaio clínico genuíno e os resultados foram estatisticamente significativos. A diferença é que foi intencionalmente desenhado para ser um mau exemplo de ciência – entre outras coisas, o pequeno número de participantes e o elevado número de parâmetros a medir criaram a receita ideal para obter falsos positivos. No entanto, nem a revista “científica” que publicou o estudo, nem os jornalistas que disseminaram a “descoberta”, se preocuparam com a validade e qualidade do mesmo.
O estudo foi enviado a 20 revistas conhecidas por serem “predatórias”, revistas que abusam do conceito de “acesso livre” para publicar qualquer artigo, por mais absurdo que seja, a troco de dinheiro. Várias aceitaram o artigo em apenas 24 horas mas a “International Archives of Medicine” acabou por ser a escolhida pela quantia de 600 euros. Um dia depois da confissão de Bohannon, a revista removeu o artigo e emitiu uma explicação onde diz que o artigo foi publicado por engano durante algumas horas, na verdade, foi publicado em Abril. Para quem tiver curiosidade uma cópia do estudo pode ser lida aqui.
Foi também criado um comunicado de imprensa sobre a descoberta, engendrado para explorar a preguiça dos jornalistas em investigar as fontes. Surpreendentemente, ou não, nem o “Institute of Diet and Health”, o sítio onde supostamente trabalhavam os cientistas, mas que não passava de uma página na Internet, levantou qualquer suspeita entre os jornalistas que divulgaram a história. Alguns publicaram a história sem sequer tentarem contactar Bohannon, outros entraram em contacto mas apenas fizeram perguntas superficiais e nenhum tentou procurar um especialista independente para pedir uma opinião sobre o estudo. Tanto tablóides como meios de comunicação mais rigorosos falharam em detectar os buracos da história.
O que falhou?
A necessidade de publicar histórias em tempo recorde, um enorme incentivo para produzir histórias que atraiam audiência, mas poucos incentivos para a verificação de fontes e correcção de erros, são apenas alguns dos possíveis motivos para a multiplicação do famigerado “herpes digital”. Adicionalmente, a falta de jornalistas de ciência que existe em muitas redacções, leva a que estudos piloto ou de fraca qualidade acabem por ser representados como a última das verdades científicas, simplesmente por serem engraçados ou nos fazerem sentir inteligentes. Uma realidade que David Marçal e Carlos Fiolhais descrevem como a “ditadura do engraçadismo”, um fenómeno que cria um terreno fértil para a propagação de pseudociência e que representa a ciência, junto do público, como um conjunto de bitaites avulsos e aleatórios.
Uma das áreas em que a ditadura do engraçadismo é mais notória e delirante é precisamente a nutrição. A sede de informação do público por histórias que envolvam a temática da obesidade ou a prevenção e cura de doenças através da alimentação, assim o obriga. Todas as substâncias do mundo têm de ser divididas entre as que fazem bem e as que fazem mal, entre as que previnem cancro e as que causam cancro, entre as que são naturais e puras e as que foram contaminadas pela artificialidade. As várias modas de estilos de vida “naturais” e “alternativos”, bem como o desejo de tomar as rédeas da própria saúde, sem médicos ou fármacos, são factores que podem explicar este enorme interesse.
No entanto, apesar de a nutrição ser realmente muito importante para a saúde, esta é uma área que é notoriamente difícil de investigar. Mesmo quando não existem falhas metodológicas graves, acidentais ou propositadas, há toda uma gama de “ruídos de fundo” que pode levar a conclusões erradas: quando se estuda ratinhos, mesmo que geneticamente idênticos e num ambiente completamente controlado, corre-se o risco de os resultados não serem os mesmos em humanos; por outro lado, quando se estuda pessoas, não é fácil controlar o que os participantes andaram realmente a comer e a fazer. Portanto, não é de todo surpreendente que os alimentos previnam e causem simultaneamente cancro dependendo do estudo que se lê.
Isto não significa que não se deva confiar em nenhuma informação sobre nutrição. O problema é que, geralmente, um jornalista de ciência entende que nem todos os estudos são iguais, mas um jornalista generalista, ou de outra área, facilmente cai no erro de apresentar como argumento de autoridade estudos que deveriam ser lidos com uma pitada de sal. Desta forma, estudos que normalmente seriam “rasgados” e esquecidos nos bastidores do “ringue” científico são hoje apresentados ao público assim que são publicados, ou até antes disso. Parte do público não entende que esse é um processo normal e fica com a ideia de que não se pode confiar na ciência porque esta “anda sempre a mudar de ideias”. Outra parte torna-se vítima dos modernos gurus da alimentação que usam e abusam de maus estudos para vender banha da cobra.
E com a própria ciência? Não há nada de errado?
Será justo colocar todas as culpas no jornalismo ou até afirmar que a nutrição é a única área científica com problemas? A ciência também falha, até mesmo quando tudo corre como é suposto, mas há quem advogue que os casos de má ciência começam a tornar-se demasiado frequentes em vários campos. A experiência de John Bohannon traz à memória algumas fragilidades, que de resto, têm sido um tema recorrente nos últimos tempos. A lógica do “publicar ou morrer” (publish or perish), bem como a pressão para que se publiquem sobretudo resultados positivos e inovadores, são frequentemente apontadas como as causas de muitos males e vícios: o incentivo à publicação em quantidade em vez de qualidade; os malabarismos na busca de uma ambicionada e, muitas vezes incompreendida, significância estatística; publicações apressadas com pouca fundamentação; o aumento da tentação de fraude; a perda de dados de hipóteses falhadas que ficam esquecidos em gavetas; e o pior de tudo – o desencorajamento da replicação independente de experiências – um importante mecanismo de correcção de erros e uma das medidas mais importantes para aferir a veracidade de algo. A isto junta-se a ascensão das revistas “predatórias” que publicam artigos sem qualquer controlo de qualidade, ou os interesses ideológicos e financeiros dos investigadores que nem sempre são revelados.
Será possível corrigir estes problemas? Talvez o melhor sinal positivo seja a discussão e a consciência que hoje existe sobre o assunto. Mas há quem já tenha passado da discussão à prática. Existem iniciativas para adaptar o sistema de revisão por pares aos tempos modernos, como a revisão pós-publicação que permite detectar falhas que a revisão tradicional deixa escapar. Surgiram activistas que se dedicam a detectar e denunciar maus exemplos de ciência, e revistas que aceitam resultados negativos ou exigem a partilha dos dados originais sem tratamentos estatísticos. Isto só para nomear alguns exemplos. A comunidade céptica tem também um papel fundamental na denúncia da má ciência e na explicação ao público do que é e como deve funcionar a ciência.
As falhas e erros são parte integral da ciência, mas esta continua a ser a melhor ferramenta que temos. Para quem não tem formação científica, o mar de informação contraditória que antigamente passava despercebido pode ser uma autêntica dor de cabeça. O melhor conselho que se pode dar para separar o trigo do joio é dar mais importância ao consenso científico do que a estudos ou especialistas individuais, o primeiro tem uma menor probabilidade de estar errado.
Informação complementar
Um Guia Geral Para Detectar Má Ciência – Recurso Comcept
A Chocolate Science Sting – Neurologica (inglês)
Falso artigo científico aceite para publicação por mais de 150 revistas de acesso livre – Público