Um esqueleto, um mestre Ioga e as certezas do engraçadismo

Uma análise das "certezas" do jornal Público sobre a descoberta de um esqueleto de um mestre ioga em Beja.

A ditadura do engraçadismo também afeta as ciências sociais e se faltava uma prova disto, o jornal Público tratou de nos esclarecer. No passado dia 22 de Janeiro, este jornal publicou um artigo intitulado “Antes, muito antes de sonharmos com a Índia, um mestre ioga chegou a Beja. A pé”. A notícia dá-nos a conhecer um enterramento peculiar, datado de há 1700 anos, descoberto em Beja no decorrer de intervenções de salvamento. A sua peculiaridade consiste na posição em que as ossadas foram detetadas. O esqueleto encontrava-se em conexão anatómica, mas em posição de lótus.

Embora o artigo de jornal não o mencione, foram já publicados dois artigos em meios da especialidade, de âmbito nacional, onde é possível confirmar a estranheza da deposição e a ausência de explicação para a mesma por parte do autor dos artigos, o arqueólogo Miguel Serra. Não conseguir interpretar a estranha deposição não é algo que deva surpreender, considerando a ausência de paralelos. Na verdade, esta ausência de paralelos somente atesta o caráter de exceção do achado.

O artigo do jornal Público vai bem mais além do que os artigos mencionados. Chamando Jorge Veiga e Castro, presidente da Confederação Portuguesa de Yoga, para interpretar o achado arqueológico, adianta-se a hipótese, ou melhor, a certeza, de que se trata de um mestre de Ioga que caminhou milhares de quilómetros para dar a boa nova aos confins ocidentais do Império Romano. A prova está nas evidências ósseas. O relatório de antropologia atesta que a pessoa em questão caminhou muito no seu tempo de vida.

Na verdade, o artigo não se encontra bem escrito, dificultando um pouco a sua compreensão. A título de exemplo, fala-se de ossadas do período islâmico e depois aponta-se uma datação de há 1700 anos, ou seja, romana. A reutilização dos espaços em diferentes períodos é algo comum, mas escrito desta forma pode originar confusão. Seja como for, facilmente se compreende que o salto entre as evidências e as conclusões é muito grande. Ora vejamos as premissas:

  1. Os ossos encontrados sugerem que o corpo foi depositado em posição de lótus. Acresce que existe literatura científica a mencionar a existência de enterramentos em posição lótus na India, nomeadamente de homens especiais dentro da estrutura religiosa hindu.
  2. Os ossos têm evidência de que a pessoa em questão caminhou muito no seu tempo de vida.
  3. Na antiguidade existiram contactos entre as civilizações do mundo mediterrânico e a Ásia.

Partindo destas três premissas, chega-se à conclusão de que a pessoa enterrada em Beja foi um mestre que viajou desde a Índia a pé, em peregrinação, chegando à província da Lusitânia, nos limites ocidentais do império romano, no século III.

A conclusão apresentada é uma hipótese possível, considerando as premissas acima mencionadas, contudo, os dados não permitem de forma alguma apresentar esta conclusão com o grau de certeza que transparece de todo o artigo. Possível é diferente de plausível e o caráter excecional do achado deveria obrigar a cautelas, ou seja, a questionar o nível de plausibilidade da hipótese apresentada.

Analisemos de novo as premissas:

  1. Posição do corpo. A posição do enterramento é, de facto, estranha, mas a ausência de uma explicação óbvia não poderá levar-nos a aceitar sem restrições qualquer hipótese interpretativa. No artigo é referido mesmo que “Não se conhece em nenhuma parte do mundo, a não ser na Índia, um fenómeno de um esqueleto em posição de lótus como o de Beja”. Esta mesma afirmação deveria inspirar cautela na interpretação do enterramento de Beja. Se não se conhece fora da Índia, é possível que esta deposição não esteja relacionada com o fenómeno que origina este tipo de enterramento na Índia.
  2. Em sociedades pré-industriais não deverá ser surpreendente que os ossos denotem sinais de caminhada. Deduzir, a partir destas evidências, que essas caminhadas decorrem de uma peregrinação de milhares de quilómetros é simplesmente abusivo. Seria interessante comparar com vários outros enterramentos da mesma cronologia. O que é exceção deverá dar origem a evidências excecionais.
  3. A terceira premissa corresponde a um facto suportado por evidência. Somente se torna relevante nesta argumentação como acréscimo às duas primeiras premissas.

Em suma, a interpretação apresentada para o bizarro enterramento romano de Beja não é necessariamente errada. Partindo das premissas apresentadas, a hipótese defendida no artigo é possível. Isso é diferente de dizer que é plausível. Acima de tudo, é necessário continuar os estudos e juntar mais dados que possam ajudar a esclarecer esta questão. Por exemplo, análises de ADN ou análises de isótopos. Só depois se poderá dizer que “São mais as certezas que as dúvidas”, expressão tão infeliz, usada no referido artigo. Infelizmente, foca-se muito mais a posição de Jorge Veiga e Castro e muito menos a do arqueólogo responsável pelos trabalhos. O resultado é, por isso, dececionante e não reflete a prudência que usualmente caracteriza este tipo de estudos na área da Arqueologia e da Bioarqueologia Humana.

3 Comments

  1. Quando li o artigo tive precisamente as mesmas dúvidas e fiquei perplexo com a falta de profissionalismo do “jornalista”, mais preocupado com o furo sensacionalista do que com a apresentação de várias perspectivas e a cautela que um caso único sempre deve inspirar. a hipótese altamente questionável apresentada como certa pelo Público levanta, além disso outras questões. O suposto mestre de yoga não podia vir sozinho, já que quem o enterrou daquela forma conhecia a posição de lotus e estava familiarizado com o ritual de inumação. Do facto de o esqueleto denotar que caminhou muito e mesmo que se chegasse à conclusão que procedia da Índia, não decorre que “veio em peregrinação”. Há muito mais hipóteses que justificam longas viagens na antiguidade do que a religiosa, nomeadamente o comércio ou a escravatura.

  2. Alguém fez como os religiosos e tentou encontrar evidências que sustentem a sua opinião em vez de tentar verificar se os factos sugerem outras evidências.
    O artigo de tão elevado e assertivo não o refere, mas eu tomo a liberdade e deixo este adjetivo para classificar o artigo do Jornal Público: “inquinado”.

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