Reconhecemos o rosto dos escritores que lemos porque, ao lê-los, nos habituamos a ver os seus retratos nas capas e nas badanas dos livros. Se aquilo que foram nos interessar, além do que escreveram, habituamo-nos também a vê-los retratados em documentários, artigos de jornal, exposições e álbuns de fotografia. Com o tempo, o rosto passa a ser-nos familiar, inconfundível e querido como o de um amigo.
Corre na Internet uma fotografia que se diz ser do momento da morte de García Lorca. Essa fotografia é partilhada com indignação contra as ditaduras, com a mesma leviandade com que se partilham as fake news de que se alimentam as ditaduras. Trata-se da fotografia de um homem de punho erguido, frente a um pelotão de fuzilamento.
Uma rápida pesquisa pelas fotografias de García Lorca demonstra bem que o homem ali retratado é outro, com o qual Lorca nem sequer remotamente se parece. E uma pesquisa um pouco mais longa, mas também pacífica, permitiria ler e aprender – haja paciência para algo mais demorado que o fogo-de-vista das redes sociais – que, do pouco que se conhece da morte de Lorca, sabe-se que terá sido recolhido por tropas franquistas, por volta de 18 de agosto de 1936, e metido numa carrinha que quando chegou ao destino já não o levava.
Não existe pois qualquer controvérsia – como dizem os que procuram desculpas para divulgar a fotografia, autoproclamando-se guardiões da memória fotográfica da humanidade enquanto a destroem – nestes dois pontos: 1) Não se sabe bem onde Lorca terá sido fuzilado e enterrado, mas pensa-se, a partir do que se sabe da detenção, que tal terá acontecido num descampado ou à beira de uma estrada; 2) Não há testemunhos oculares conhecidos (directos ou fotográficos) do momento em que morreu.
Este sim é Lorca (à direita), numa fotografia tirada por David Seymour (Chim), em Maio de 1936. Lorca morreria três meses depois, com 38 anos feitos em Junho. Não chegou a ter cabelos brancos.

From the left Spanish poets Emilio PRADO and Federico GARCIA LORCA.
Esta fotografia está alojada e rigorosamente identificada quer na Magnum Photos quer no International Center of Photography, ambos fidedignos na identificação de fotógrafos e fotografados, e pertence ao The Robert Capa and Cornell Capa Archive.
Lorca tinha um nome, um rosto, uma identidade e a sua morte foi insidiosa e cobarde. Se queremos mesmo combater as ditaduras, passadas e futuras, que nos matam as pessoas queridas, podemos começar por respeitar a integridade dessas pessoas, da qual rosto e nome e história são indissociáveis. Podemos também desenvolver, em geral, uma higiene intelectual que nos impeça de partilhar informação não confirmada.
Sobre a mesma questão, linkamos ainda o desmentido do Compartilhando Histórias, sobre desinformação no mundo dos memes.
Por fim, um apelo: há cerca de dois anos, quando pela primeira vez pesquisámos sobre este assunto, lemos que a foto que falsamente se atribui ao momento da morte de Lorca era de uma peça de teatro em que se representava a sua morte; desta vez não conseguimos reencontrar essa informação, mas agradecemos emails e cartinhas vossas, caso saibam algo mais a respeito.
One Comment
A “foto” é um instantâneo retirado dum clipe musical. Eis o comentário ao artigo que referes e o dito clipe: https://compartilhandohistorias.wordpress.com/2017/05/24/a-impossivel-foto-do-fuzilamento-de-lorca-e-a-desinformacao-no-mundo-dos-memes/#comment-875