Análise ao recente artigo que indica que o glifosato é responsável por um aumento de 41% dos casos de Linfoma Não-Hodgkin.

Foi divulgado no mês de Fevereiro a publicação de um artigo que indicava que herbicidas baseados em glifosato seriam responsáveis pelo aumento do risco de contrair linfoma não-Hodgkin (LNH), um tipo de cancro. [1]

Esta publicação veio alimentar a controvérsia em torno do glifosato, uma substância que faz parte do herbicida conhecido comercialmente como Roundup. Referimos controvérsia porque apesar da maioria das instituições reguladoras de segurança ambiental e de saúde concluírem, após centenas de estudos, que a substância é segura se usada de acordo com as instruções e estando padronizados os níveis de segurança de toxicidade para plantas e animais (incluindo humanos), ocasionalmente surgem artigos ou relatórios que aparentemente apontam em sentido contrário.

Entre as instituições que dizem não haver risco para os humanos estão a European Food Safety Authority (EFSA), a United States Environmental Protection Agency (EPA) e a Organização Mundial de Saúde (OMS). No entanto, a International Agency for Research on Cancer (IARC), que pertence à OMS, incluiu há uns anos o glifosato no grupo das substâncias provavelmente cancerígenas, mas isto merece ser contextualizado, como veremos de seguida. Consultemos as fontes relativamente ao que acabei de escrever:

Num artigo, de 2017, de avaliação de risco que avaliava a potencialidade do glifosato atuar como disruptor endócrino, a EFSA, responsável pela segurança alimentar, concluiu:

A atual avaliação concluiu que o peso da evidência indica que o glifosato não possui propriedades disruptoras endócrinas (…) baseado numa base de dados abrangente disponível na área da toxicologia. Os estudos de ecotoxicologia disponíveis não contradizem esta conclusão.” [2]

A mesma organização, em 2018, avaliou o impacto do glifosato e seus resíduos na alimentação para a saúde animal, tendo concluído:

Relativamente à avaliação do impacto do glifosato e seus resíduos para a saúde animal, considerando a informação disponível, não se espera que o glifosato tenha um grande impacto, se é que tem algum, para a saúde animal.” [3]

De acordo com a EPA:

A informação disponível até ao momento não apoia o processo carcinogénico do glifosato. Além do mais, os estudos de genotoxicidade e carcinogenicidade animal foram notavelmente consistentes e não demonstraram uma clara associação entre exposição ao glifosato e resultados de interesse relacionados com potencial carcinogénico. Em estudos epidemiológicos, não houve evidência de uma associação entre exposição ao glifosato e desenvolvimento de cancro; contudo, devido a limitações encontradas nos estudos sobre LNH, uma conclusão relativa à associação entre exposição ao glifosato e o risco de LNH não pode ser determinado com base na informação disponível. (…) Em estudos de genotoxicidade, não houve evidência convincente de que o glifosato é genotóxico in vivo via passagem oral.” [4]

Glifosato tem baixa toxicidade para humanos se seguirem as instruções de uso, é ligeiramente tóxico para aves, não é tóxico para peixes, invertebrados aquáticos e abelhas. [5] Mais acrescenta: “(…) o glifosato não aparenta ser carcinogénico para humanos. A avaliação da agência não encontrou outros riscos significativos para a saúde humana quando o produto é utilizado de acordo com as instruções”. [6]

O mesmo afirmou o relatório de 2016 da Australian Pesticides and Veterinary Medicines Authority (APVMA). [7] A organização alemã Federal Institute for Risk Assessment (BfR), num relatório de 2015, concluiu que “a informação disponível não revela propriedades mutagénicas ou carcinogénicas do glifosato, nem que o glifosato é tóxico para a fertilidade, reprodução ou desenvolvimento embrionário em animais de laboratório”. [8] O conhecido artigo Agricultural Health Study (AHS), de 2018, acompanhou durante 10 anos mais de 50 mil pessoas, nos EUA, e concluiu que não encontrou associação entre glifosato e cancro, incluindo LNH. No entanto, parecia haver alguma evidência de maior risco de Leucemia Mieloide Aguda (LMA) entre o grupo com maior exposição, embora esta afirmação precisasse de confirmação. [9]

A OMS, através da Joint FAO/WHO Meeting on Pesticide Residues (JMPR), também confirma que o glifosato não causa cancro. No entanto, a IARC, que também pertence à OMS, publicou um relatório que indicava o oposto. Serão estes resultados da mesma organização contraditórios entre si? Não, porque o relatório da IARC analisa o perigo (hazard) baseado na quantidade de informação existente, enquanto o relatório da JMPR analisa o risco, ou seja, a probabilidade de causar dano – e é esta quantificação em percentagem que interessa. [10] Para que se perceba melhor o que está em causa, recomendamos a leitura de dois textos que já publicámos no passado (aqui e aqui). [11] e [12]

O que agora novo artigo publicado este mês indica é que encontrou uma associação entre os herbicidas baseados em glifosato e o cancro. Através da análise de estudos epidemiológicos que foram publicados entre 2001 e 2018, determinou-se que a exposição ao glifosato pode aumentar o risco de LNH em 41%. A revisão da pesquisa epidemiológica teve em conta estudos com humanos mas também com ratinhos em laboratório. A análise a humanos refere-se apenas a agricultores altamente expostos enquanto aplicadores do herbicida. [13] Isto difere do estudo do AHS de 2018, acima referido, porque exclui os consumidores comuns. Os autores deste estudo não fizeram uma nova recolha de dados, antes pegaram nos dados já existentes de outros estudos, retiraram os consumidores comuns e focaram-se num grupo muito específico, que foi o dos agricultores altamente expostos, o que não só não permite comparações, como ainda favorece uma determinada hipótese em estudo. Contudo, isso é mencionado no capítulo 5 do artigo sobre as forças e limitações do estudo. Cancros do tipo LNH são os mais comuns na Europa e nos EUA, pelo que mesmo sem exposição ao glifosato, haverá pessoas a desenvolvê-lo devido a fatores de risco. [14] A probabilidade de um homem desenvolver LNH é de 1 em 42 (2,4%) e de uma mulher desenvolver o mesmo linfoma é de 1 em 54 (1,9%). [15] Mas este novo artigo trata de risco comparativo, pelo que a primeira questão que se deve colocar é 41% relativamente a quê. O alarme social suscitado levou a que as pessoas certamente pensassem que a humanidade iria ver um crescimento de 41% de desenvolvimento deste tipo de linfoma na população. Mas não é isso que o artigo indica, mas antes um aumento de 41% relativamente ao risco já registado. Ou seja, o risco aumentaria para 3,4% de homens e 2,6% de mulheres, mas este aumento só se deveria aos membros altamente expostos, e não aos consumidores para os quais não há evidência de que sejam afetados. [16]
Este artigo baseia-se num grande número de casos relatados por Andreotti et al (2018), que estudou a influência do glifosato no risco de cancro em períodos de 5, 10, 15 e 20 anos. Contudo, o aumento do risco, só se verificou a partir dos 20 anos de exposição. [16]

Como conclusão: está-se a criar um pânico social, quando o artigo se refere apenas a um grupo muito específico da população, que são os agricultores altamente expostos ao produto, durante mais de 20 anos. Relativamente ao uso individual e esporádico de acordo com as instruções e relativamente aos consumidores, não há provas de que o glifosato cause cancro, dentro dos limites de segurança. Como já foi referido, é a dose e tempo de exposição que aumenta o risco ou torna nociva qualquer substância.

Com base no que aqui foi escrito, esta não é apenas uma questão puramente científica mas também social, pois os cidadãos precisam de ser esclarecidos quanto aos riscos que os rodeiam, de modo a tomarem melhores decisões. A investigação irá continuar e novos estudos se juntarão aos milhares (sim, é esta ordem de grandeza) já publicados. O importante é não criar alarmismos e assentar as decisões em conhecimento técnico. O que a guerra ao glifosato já está a fazer em Portugal é levar à substituição de herbicidas baseados em glifosato por outros herbicidas com maiores riscos para o ambiente e saúde humana.

Fontes:
[1] Zhang et al., Exposure to Glyphosate-Based Herbicides and Risk for Non-Hodgkin Lymphoma: A Meta-Analysis and Supporting Evidence, Mutation Research/Reviews in Mutation Research, 2019

[2] EFSA (2017)

[3] EFSA (2018)

[4] Revised Glyphosate Issue Paper: Evaluation of Carcinogenic Potential. EPA’s Office of Pesticide Programs December 12, 2017

[5] EPA – Glifosato

[6] EPA – Avaliação de risco

[7] APVMA

[8] BfR – Avaliação do glifosato

[9] Andreotti et al., Glyphosate Use and Cancer Incidence in the Agricultural Health Study, J Natl Cancer Inst., 2018

[10] OMS

[11] Comcept – O bitoque vai-nos matar?

[12] Comcept – Vamos abolir as lareiras?

[13] Science Daily 

[14] Cancer Org – Risks Prevention

[15] Cancer Org – Non-Hodgkin Lymphoma statistics

[16] Genome – Field of Science

One Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Procurar
Outros artigos
Daniel Dennett (1942-2024)
João L. Monteiro
Votação para o Prémio Unicórnio Voador 2023
Comcept
Quando o marketing se apropria dos conceitos “Natural” e “Tecnológico”
João L. Monteiro