Embustes e Pseudo-História – Breaking News! (parte 1)

O historiador Paulo Jorge de Sousa Pinto, do CHAM – Centro de Humanidades, NOVA FCSH - fez a recensão crítica Os factos escondidos da História de Portugal.

José Gomes Ferreira publicou um livro que, segundo a entrevista ao Expresso, é uma provocação aos “historiadores oficiais”. Lançámos, por isso, o desafio ao historiador Paulo Jorge de Sousa Pinto, do CHAM – Centro de Humanidades, NOVA FCSH – para ler e comentar Os factos escondidos da História de Portugal. Esta é a primeira parte.


Escrevi em tempos que “A História, já cá se sabia, é a puta mais deslavada e maltratada de que há memória, de quem toda a gente se serve e que ninguém respeita nem paga o devido preço pelo uso e, quantas vezes, abuso.” Referia-me à sua utilização leviana e instrumental por políticos, comentadores, economistas e tantos outros para justificar ações e opiniões, geralmente sem crítica ou contraditório. Agora é tempo de falar dos seus chulos; aqueles que se apropriam dela sem a conhecerem nem respeitarem, que a usam em proveito próprio e que obtêm lucro, fama e proveito à custa da sua exploração desenfreada. Há um princípio geral que permite identificá-los segundo uma fórmula empírica: os seus créditos na comunidade científica são inversamente proporcionais ao grau de novidade revolucionária das suas propostas. Quer isto dizer que, quando mais bombástica a alegada revelação, menor a sua credibilidade. Infelizmente, maior o seu sucesso, também. Erich von Daniken e as suas teorias sobre os extraterrestres na História ou Gavin Menzies e as teses acerca das viagens chinesas do século XV estão aí para prová-lo. Estes autores sabem que a História faz-se de pequenos contributos, de pequenas descobertas, de pequenos avanços validados pela comunidade científica; uma atividade morosa, difícil e escrutinada. Nada disto lhes interessa, nada disto atrai holofotes, curiosidade mediática e interesse do público, nada disto vende. Teorias revolucionárias, “verdades ocultas” e “segredos revelados” pela autoproclamada argúcia genial e solitária do autor X é que sim, que importa se assentam em falácias, omissões, erros grosseiros e doses generosas de ignorância? Evidentemente, estas teses estão sujeitas à crítica por parte de investigadores, académicos e especialistas que, de um modo geral, simplesmente as ignoram. Quem se presta a desmontar e desmascarar estas fraudes sabe que tem pela frente um combate árduo, inglório e, sobretudo, desigual; mas necessário, porque o silêncio é uma validação implícita que promove a disseminação da ignorância, do erro e da mentira.

Em Portugal, o terreno mais fértil para a proliferação de obras de pseudo-História é a vulgarmente chamada “época dos Descobrimentos”, em particular questões ligadas ao pioneirismo das navegações portuguesas, a naturalidade de Cristóvão Colombo, a chegada ao continente americano antes de 1492 ou viagens secretas à Austrália. Trata-se de velhos temas da historiografia da expansão portuguesa, que conhecem revisitações recorrentes por invocação de um sentimento latente – de teor nacionalista ou patriótico – de “injustiça” perante alegados feitos heroicos remetidos ao esquecimento. Mas faltava um alinhamento global destes episódios e o seu enquadramento coerente num projeto político.

Em 2021, esse momento chegou, finalmente, pela mão do jornalista e diretor-adjunto de informação da SIC, José Gomes Ferreira, e da sua obra Factos Escondidos da História de Portugal – o que os compêndios não nos dizem (Lisboa, Oficina do Livro, 2021). A visibilidade pública e mediática do autor poderia ser uma excelente mais-valia para a divulgação e promoção do conhecimento e da compreensão da História e da erradicação de equívocos, erros e ignorâncias antigas e recentes; infelizmente, José Gomes Ferreira (JGF) faz exatamente o oposto. Numa palavra, o livro é um completo embuste e a sua visibilidade e promoção mediática é mais um longo e profundo prego no caixão da divulgação da História em Portugal.

Fazer uma recensão crítica exaustiva do livro é uma tarefa extenuante e ingrata. São 477 páginas de amontoado de dados, mapas, figuras e datas; e, sobretudo, de muita presunção e ignorância, em doses generosas. Além disso, JGF usa a estratégia habitual de qualquer pseudo-historiador que se preze: manipula e distorce informação, utiliza os dados que lhe são convenientes e omite – ou desconhece – outros, baseia-se numa galeria de autores e obras sem crédito ou obsoletas para sustentar as suas ideias, salpicando o panorama desolador com amostras de trabalhos de autores consagrados, quando isso lhe interessa, e destila tudo à medida das “teses” que quer provar. 

O seu raciocínio dá frequentes saltos que desafiam a lógica. O livro não tem bibliografia. São citadas umas quantas obras, autores e fontes, de forma anárquica, por vezes no corpo do texto, por vezes em nota de rodapé, por vezes entre aspas, muitas vezes nem isso. No fundo, é o que menos importa. Importa é contribuir para a grande tese unificadora de todos os clichés da pseudo-história nacional: a de que existe uma “História Oficial”, mantida pelo establishment político, económico e universitário de Portugal que sistematicamente omite e oculta “verdades” do público. Portanto, e ao contrário da maior parte dos seus antecessores, que se limitaram a defender teses parcelares sobre alegados “segredos” (Colombo português e/ou agente secreto de D. João II, descoberta da Austrália, etc), JGF junta o ingrediente mágico que une e concede espessura e fermento a todas estas ideias: uma teoria da conspiração. Segundo JGF, as “verdades escondidas” que agora desvenda e expõe têm sido propositadamente mantidas na sombra pelos historiadores (a que desdenhosamente apelida de “oficiais”, ortodoxos”, “apostados em negar as evidências”, entre outros mimos menos agradáveis) por comodismo, conveniência ou interesse. Mas deixo esta questão para o fim.

Para já, farei uma abordagem, necessariamente incompleta, a cada uma das partes do livro. Vou tentar não repetir o trabalho de Roger Lee de Jesus e Paulo Dias, na análise crítica que fizeram no seu podcast “Falando de História” cuja escuta, aliás, recomendo. Acaba de sair uma recensão de José Carlos Fernandes que igualmente aconselho.

O livro começa com pequenas introduções (uma “chave linguística”, umas “inquietações sobre a História de Portugal” e uma “visão crítica do jornalista”), onde o autor divaga sobre as “teses” que defende, figuras, túmulos, estátuas e escravatura para chegar ao que vem: que este “não é um livro de História. É um livro de Política, ou melhor, um livro sobre as opções políticas erradas que temos seguido no tratamento que damos à História de Portugal” (p. 33).

A Parte I ocupa sensivelmente metade da obra e é dedicada aos “casos” da alegada primazia das viagens portuguesas antes de quaisquer outras. O seu título não deixa margem para dúvidas: “Estivemos Lá Primeiro!”. Ao longo de mais de 200 páginas, JGF faz o passeio dos tristes habitual, a ronda das capelinhas completa: viagens portuguesas à América antes de Colombo, chegada à Austrália na década de 1520, talvez avistamento precoce da Antártida. 

Começa pelo chamado “mapa de Pizzigano”, de 1424, que diz ter sido descoberto “já em pleno século XXI” (p. 67) (embora o estudo que Armando Cortesão lhe dedica seja de 1954) e que contém alegadas representações da Terra Nova e a Nova Escócia, provando que os navios portugueses chegaram lá antes dessa data. Contudo, “a História Oficial de Portugal (…) não lhe dá qualquer valor de prova, concluindo que (…) mostra umas alegadamente imaginárias ilhas no meio do Oceano Atlântico”. JGF mete-a imediatamente na ordem: “se quisermos ser sérios e rigorosos na análise (…), somos forçados a concluir que nele nada é fantástico, nenhum território, ilha ou local é imaginado e não provado” (p. 41). E como faz ele isso? Via GoogleMaps.

Qualquer historiador teme embrenhar-se na cartografia, porque esta exige conhecimentos aprofundados e específicos e porque os mapas dessa época não são “projeções” como os atuais com latitudes e longitudes, são cartas-portulano com “linhas de rumo” destinadas à navegação com bússola. Há, além disso, todo um conjunto de conhecimentos sobre a geografia dos autores clássicos e medievais, conceções do mundo, incorporações bíblicas e ilhas lendárias que é preciso considerar para “ler” e interpretar corretamente um mapa do século XV. Portanto, aplicar imagens do GoogleMaps sobre um mapa como o de Pizzigano e fazer um Eureka! serial é um disparate absoluto. A que autores recorre JGF? Carlos Fontes, autor de um blog, Manuel Luciano da Silva, o médico português que foi, durante décadas, o promotor de todo o tipo de balelas (como a “Pedra de Dighton”) com o objetivo de provar o mesmo que JGF, e Manuel da Silva Rosa, autor de Portugal e o Segredo de Colombo. Cita também um artigo de um autor americano para chegar a Armando Cortesão, um dos grandes historiadores portugueses de cartografia do século XX. O que não diz é que essa tese de Cortesão (já agora, The nautical chart of 1424, Coimbra, 1954) era apenas uma hipótese de trabalho e que foi fortemente contestada pelos seus pares, a começar por Luís de Albuquerque (que JGF nem deve imaginar quem tenha sido). 

Depois, seguindo a mesma técnica de uso do GoogleMaps, passa ao “mapa de Colombo” de 1491. A mítica Ilha das Sete Cidades passa automaticamente a Canadá e outros malabarismos idênticos. Pormenor curioso: JGF não se apercebe – estranho seria – que a “Thile” que diz ser a Islândia (p. 60) e a “Tullia” que afirma ser a Gronelândia (pp. 53 e 269, entre outras) são um e o mesmo nome, com origem nos geógrafos da Antiguidade. Não seria preciso recorrer a pergaminhos antigos; bastaria uma consulta na Wikipedia, em “Thule”. De seguida, os mapas de Cantino, Waldseemuller e Andrea Bianco são submetidos ao mesmo tratamento. Idem para o mapa de Martellus (de Yale), que merece tratamento especial. “Fica o desafio para que os historiadores portugueses, em vez de escreverem levianamente que o Cipango do Mapa de Martellus de 1490-91 é o Japão, calculem as distâncias e certamente chegarão a uma nova conclusão”. De facto, quem se lembraria de pensar que uma ilha a leste da China e chamada “Cipango” poderia ser o Japão? Só mesmo um historiador “oficial” ignorante ou parcial. JGF diz que aquele “Cipango” é – obviamente – a Florida. Talvez um dia, na sua senectude, JGF tenha tempo para ler os resultados da recente e profunda investigação sobre este mapa conduzida por Chet van Duzer (um “independente” como ele), que mereceu breve menção na imprensa portuguesa e que saiu sob o nome de Henricus Martellus’s World Map at Yale (c. 1491) – multiespectral imaging, sources, and influence (Springer, 2019). Aí veria que não são só “historiadores portugueses” a dizer barbaridades como a de fazer equivaler Cipango ao Japão. Mas em vez destes historiadores, certamente vendidos aos grandes interesses da História Oficial, JGF prefere autores consagradíssimos, que cita profusamente, como um tal John D. Irany e o seu Before 1492 – The Portuguese Discovery of America. Nunca ouvi falar, mas se para JGF basta, quem sou eu para manifestar alguma reserva? Como bastará apoiar-se em Mascarenhas Barreto (pp. 105-109) e no seu Cristóvão Colombo, Agente Secreto de D. João II, a quem elogia “a ousadia”, talvez por ser “também desalinhado do sistema oficial”. Créditos são créditos.

Mapa de Henricus Martellus
Mapa de Henricus Martellus

Entre as páginas 112 e 117, JGF descobre Duarte Pacheco Pereira e o seu Esmeraldo de Situ Orbis, obra preciosa e escrita entre 1505 e 1508 (JGF diz que foi em 1505, porque lhe convêm as datas precoces), um roteiro da costa ocidental africana que, a certa altura, menciona uma viagem que o autor diz ter realizado ao continente americano em 1498. Esta obra é apresentada em tom sensacional, afirmando o autor que “este texto já deveria estar obrigatoriamente presente em todos os manuais e livros de História Oficial de Portugal e já deveria ter sido promovido por Portugal em todos os meios académicos, intelectuais, diplomáticos e políticos em todo o mundo. Infelizmente, continua a ser ignorado em Portugal e no estrangeiro. Já na p. 19 escrevera que “os historiadores oficiais desprezam este testemunho”. Bem, sei da existência de, pelo menos, 4 edições da obra, que está presente nos manuais escolares – nomeadamente a célebre expressão sobre “a experiência, que é madre das cousas” – e não há historiador que não a conheça e utilize. Joaquim Barradas de Carvalho, que dedicou a sua vida ao estudo deste texto e sobre o qual escreveu a sua tese de doutoramento (publicada pela Gulbenkian em 1983, com o nome de À la recherche de la spécificité de la Renaissance portugaise) deve estar às voltas no túmulo. Francisco Contente Domingues, recentemente falecido e que publicou A Travessia do Mar Oceano – A Viagem de Duarte Pacheco Pereira ao Brasil em 1498 (A Tribuna da História, 2012), idem.

Na página 133 tem início o capítulo  dedicado à Terra Nova e ao Canadá. Começa por fazer uma revisão da matéria dada, voltando aos mapas. Desta vez acrescenta um novo, a que chama de “Rasmusio” (é, na realidade, o compilador de viagens Giovanni Battista Ramusio) que, num dos seus mapas (de 1556) menciona uma “illa de Demoni”; ora, segundo JGF, trata-se nada menos que “Satanazes”, uma das ilhas do mapa de Pizzigani (1424), já mencionado, que diz ser a Terra Nova. Satanases e demónios, tudo a mesma coisa, para quê complicar, certo? De que se trataria, afinal? JGF explica: de “furtivos habitantes autóctones na região, de origem esquimó, que se vestiam com grossas peles de animais”. “Por toda a região existiam povos autóctones que se juntavam em pequenos aglomerados onde usavam o fogo à vista da navegação costeira. Por isso, os primeiros navegadores terão chamado à região ilhas das Sete Cidades” (p. 135). Genial, como é que nunca ninguém se tinha lembrado de tal evidência? Na nota 34 da mesma página, num raro acesso de profusão bibliográfica, constam 7 autores e obras que aceitam as viagens de João Vaz Corte-Real ao Canadá no século XV. Nenhuma é posterior a 1933. Da mesma forma, usa Damião Peres e a sua História dos Descobrimentos, obra de 1943. Na página 138, emerge, finalmente, uma ideia verdadeiramente revolucionária: para JGF, “Canadá” provém de Canada, nome da propriedade dos Corte-Reais, perto de Tavira: “foi assim este o nome cem por cento português que João Vaz Corte Real usou para designar o canal natural do Atlântico de entrada para o interior do continente norte-americano”. Canada, Canadá. Brilhante, não é? Pena é o autor não indicar outro suporte de tão magnífico raciocínio além da sua própria clarividência. E acrescenta que “«vou ali à Canada» seria aliás um nome de código para os pescadores de bacalhau e os navegadores se referirem sigilosamente a um vasto território do outro lado do Atlântico” (p. 140). Assim em jeito de “deixa a panela ao lume que já venho”, presumo. Revisitações a Giovanni Caboto e à pesca do bacalhau completam a ronda, concluindo que “que Portugal foi efetivamente a primeira potência europeia ocupante da Província do Labrador e da Terra Nova no Canadá”. 

Depois, JGF passa à alegada descoberta do Brasil nos meados do século XV. É um momento alto do livro, ao anunciar e transcrever partes de um documento (chamado “Memorial Português”) que “prova a pré-descoberta da América pelos portugueses” (pp. 173-174). Trata-se, efetivamente, de uma carta anónima de um português a Isabel de Castela, de 1494, em plenas negociações do Tratado de Tordesilhas, tentando dissuadi-la de prosseguir o projeto de Colombo, entre outras intenções. Das duas, uma (e digo-o sem ironia): ou JGF é ingénuo e deixou-se ludibriar, aceitando uma transcrição de fiabilidade duvidosa, ou é malicioso e sabe que está a enganar conscientemente os seus leitores. Nenhuma das hipóteses abona a seu favor. JGF diz na nota 49 que o documento está em Simancas, mas omite (ou desconhece) que o documento está transcrito no apêndice documental de uma tese de mestrado. Coloco aqui em confronto apenas uma pequena parte da versão de JGF e a transcrição mencionada, no original em castelhano (bolds meus); quem quiser conferir pode ler o manuscrito aqui.

“Saiba e creia Vossa Alteza que o nosso contrário [D. João II] (…) lhe atravessou duas coisas falsas e vãs, não somente não proveitosas, mas danosas e custosas e perigosas (…) Uma à mão direita [as Antilhas, considerando o mapa do Atlântico, visto com o Sul no topo] e a outra à mão esquerda [as Canárias e o Norte de África], para vos desviar daquela do meio, onde está todo o bem que se pode dizer ou pensar [o território do Brasil e o verdadeiro caminho marítimo para a Índia].”

“Sepa i crea Vuestra Alteza, que nuestro contrario, enemigo de todo bien que es ell diablo con enbidia de la grande hy virtuosa prosperidat de aquelha, i de la muy maior y en que consiste la maior parte del bien i rreparaçion de toda la cristandat, (…), le atravesso dos cosas falsas i vanas no ssolamente no provechosas, mas danhosas i costosas i peligrosas, la una a mano derecha y la otra a mano ssiniestra, por os desbiar de la de medio en que esta todo ell bien que sse puede dezir hu pensar”

Em resumo, o autor do manuscrito fala do diabo, inimigo da Cristandade (e dos Reis Católicos em particular), sempre pronto a enganar tudo e todos e que tenta iludir Isabel, a Católica, com iniciativas danosas e perigosas. A linguagem é moralista e com alusões à Bíblia, nomeadamente o uso dos termos “mão direita” e “mão esquerda”. Mais adiante, fala da sua própria prática de navegação, mas apenas menciona “Noruega” e “Escócia” (que JGF cuidadosamente omite). Nada de Brasil, Antilhas, Canadá ou o que JGF alega entre [ ]. Por fim, D. João II, no texto, é chamado de “tirano y malo” ou “quebrantador de la ley”; nunca poderia ser o “diabo” (como alega JGF), algo indigno e ofensivo na época, mesmo para alguém que nutria especial aversão ao rei de Portugal. 

Seguem-se novas divagações carregadas de “provas irrefutáveis”, desta vez sobre o mapa de Andrea Bianco, a malfadada “política de sigilo” (de que JGF nem sequer conhece o autor que a propôs e enunciou) e a linha de Tordesilhas.

O 4º capítulo (pp. 199-244) é dedicado à alegada descoberta “secreta” da Austrália pelos portugueses. O começo não podia ser mais auspicioso: Uma estrofe d’Os Lusíadas que JGF enche de [ ], como habitualmente, dizendo que se refere à Austrália: “olha a Sunda tão larga que uma banda / Esconde pera o sul dificultoso / A gente do sertão que a terras anda /Um rio diz que tem miraculoso (…)”. Como JGF acha que Sunda é um “conjunto de ilhas a sul da China”, não é difícil imaginar o cenário australiano que monta, com o modo inquisitório habitual: “como é que, em 1570, Camões sabia que para sul das ilhas de Sunda havia um extenso território com um sertão ou território agreste, inculto e semiárido (…)?” (p. 200). Percebesse JGF alguma coisa de geografia asiática – básica – do século XVI e saberia que Sunda não era nenhum “conjunto de ilhas a sul da China”, mas sim a designação da região ocidental de Java, com sertão inóspito, sim, e uma costa meridional tormentosa e de difícil acesso à navegação. 

Daqui passa para a “descoberta portuguesa da Austrália” que “tem tudo para ser escrita em letras de ouro na História do Mundo”, seguindo fielmente a obra do jornalista australiano Peter Trickett, Beyond Capricorn. Abstenho-me de comentar este assunto. Já está mais do que provado de que a tese “Cristóvão de Mendonça” é inverosímil e que o livro de Trickett está cheio de disparates, falácias e erros. Como fiz a recensão do mesmo há uns tempos, permito-me a remissão. JGF junta outras alegadas “provas”, novas e velhas, nomeadamente os chamados “mapas da Escola de Dieppe”, não faltando, sequer, a gravura de um alegado canguru num livro de orações do século XVI (p. 227). Só um pormenor; nas pp. 202-204, JGF transcreve parte de um texto laudatório das teses de Trickett, que apresenta assim: “escrevia o semanário Sol, de 10 de maio de 2013, num artigo da revista Vida”. O que JGF não diz (mas sabe-o) é que o autor da peça é o próprio Peter Trickett. Lapidar. Por fim, JGF não compreende porque é que os “historiadores oficiais” continuam a recusar-se a aceitar “tanta abundância de provas diretas e indiretas”. Já para os políticos, o cenário é diferente: o Ministério da Educação teria que “mudar todos os programas escolares e alterar todos os manuais de História” e emergiriam “problemas diplomáticos” para o Presidente da República, o ministro dos Negócios Estrangeiros, membros do governo e embaixadores se tivessem, subitamente, que “passar a defender oficialmente que não foram os ingleses nem sequer os holandeses que descobriram a Austrália na Era Moderna” (p. 243).Inesperadamente, no capítulo 5, chamado de “Se mais mundo houvera, o Lusitano lá chegara!”, dedicado à Antártida e outras paragens, JGF evoca um autor que, no essencial, contradiz tudo o que esta obra defende (nomeadamente na questão da “descoberta portuguesa da Austrália): Luís Filipe Thomaz. Evoca-o, mas não o cita. Deduzo que também não o tenha lido ou, se sim, que o considere mais um “historiador oficial” apostado em “negar as evidências”. 


A Segunda parte pode ser lida aqui.

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