Segue a segunda parte do texto de Paulo Jorge de Sousa Pinto sobre o livro Os factos escondidos da História de Portugal de José Gomes Ferreira. A primeira parte pode ser lida aqui.
Política, Propaganda e Verdade Histórica
A Parte II aborda três assuntos: Cristóvão Colombo, “os segredos e a propaganda da Casa Real de Portugal” e Fernão de Magalhães. O primeiro consta de uma composição de velhas historietas regurgitadas, envolvendo “o português Cristóvão Colon” e/ou os serviços que prestou a D. João II, de quem era agente secreto. JGF não quer saber da sua nacionalidade; interessa-lhe apenas demonstrar que o navegador agiu em conluio com o rei para atrair os espanhóis para oeste, afastando-os da verdadeira Índia. Lá vem Mascarenhas Barreto, Manuel da Silva Rosa e o elogio do autor aos “investigadores independentes” e, depois, uma ode a Colombo e uma proposta para que sejam criadas quase duas dezenas de evocações públicas nos “locais onde esteve”, entre uma estátua no Largo de Santos, em Lisboa, placas alusivas em diversos locais, memoriais no Convento do Carmo e Torre de Belém, em Lisboa, Castanheira do Ribatejo, Alvito e Beja, entre outros.
Depois de Colombo, segue-se a habitual atribuição de uma genialidade visionária e quase sobre-humana de D. João II e de D. Manuel que, no essencial, terão conseguido manobrar, manipular e enganar espanhóis e outros europeus, graças a infalíveis estratégias de propaganda e de serviços secretos. JGF começa pelas “viagens secretas” entre 1488 e 1498, que diz ser “uma das décadas deliberadamente mais mal explicadas da História da Expansão portuguesa”, um “autêntico buraco negro da investigação histórica em Portugal, deixado pelos sucessivos poderes políticos, pelos ministros da educação e pelas reitorias das universidades portuguesas nos nossos livros de História (…); políticos e historiadores portugueses ainda hoje não querem contar-nos toda a verdade sobre a Expansão Marítima portuguesa, seja por falta de vontade de rever os manuais, seja por alguma outra intenção deliberada” (pp. 301-302).
A questão é antiga: porque é que houve um hiato de 10 anos entre a viagem de Bartolomeu Dias e a de Vasco da Gama? As razões são diversas e nada oferecem de misterioso, exceto para JGF, como seria de esperar. Uma vez mais, apoia-se em Armando Cortesão (e uma vez mais sem conhecer a obra – é esta, e muito controversa: Armando Cortesão, O Mistério de Vasco da Gama, Coimbra, Junta de Investigações do Ultramar, 1973) para explicar supostas viagens do Gama ao Índico – entre outras – antes de 1498. A alegada citação do que chama de “diário” do navegador árabe Ibn Majid (que alegadamente o prova) está deturpada. Os problemas que envolvem as obras de Ibn Majid são complexos e nebulosos, mas presumo que que JGF não os conheça, muito menos os autores que os estudaram, como Ibrahim Khoury (As-Sufaliyya, «The Poem of Sofala», by Ahmad ibn Mâgid, Coimbra, Junta de Investigações do Ultramar, 1983). Mas quem quiser vislumbrar uma ponta do nó pode conferir o ponto de situação em Sanjay Subrahmanyam, A Carreira e a Lenda de Vasco da Gama, Lisboa, CNCDP, 1998, pp. 151-158.
Adiante. Seguem-se as manipulações cartográficas feitas por Portugal para enganar os espanhóis, indicando vários exemplos. Diga-se, em abono da verdade, que tem razão no que diz respeito ao chamado “Atlas Miller”, que reconhecidamente tem erros propositados e conceções geográficas obsoletas. Isto está estudado há já algum tempo e não constitui qualquer novidade. Aliás, JGF transcreve longamente um excerto de um estudo de Alfredo Pinheiro Marques (pp. 321-323) que explica isso mesmo. Mais um exemplo do uso de materiais e posições de historiadores de reconhecido mérito que, por passe de mágica, deixam momentaneamente de ser “oficiais” e “ortodoxos”.
Depois, JGF passa a Magalhães e à sua viagem. A sua posição é simples: tudo não passou de uma estratégia de D. Manuel (o monarca que “queria ser rei de Portugal e também de Espanha!”, p. 330) para “oferecer” as Filipinas ao rei de Espanha e desviá-lo das Molucas, uma vez que os portugueses há muito que conheciam a passagem para o Pacífico. “Tudo indica que o rei de Portugal tinha estabelecido um acordo secreto com o seu genro (e depois cunhado) Carlos I, para a realização de uma expedição científica conjunta aos mares das ilhas das Especiarias através do estreito da Terra do Fogo” (p. 329). Confesso que gosto muito do “tudo indica”. Mais adiante esclarece que “Fernão de Magalhães nunca entrou em divergências com D. Manuel I. Os dois fingiram estar zangados para Magalhães ter um pretexto para sair de Portugal” (p. 346). Confesso que não percebo muito bem a lógica deste raciocínio, ou seja, como é que a melhor forma de afastar os espanhóis da Ásia era conduzir uma armada pelo Pacífico e levá-los até às Filipinas, mas desisti de tentar compreender muitos dos argumentos do livro. Diga-se que estas ideias mirabolantes não são originais. JGF reconhece-o (nota 98): estão na obra de José e António Mattos e Silva (que esclarece serem “professores do Instituto Superior Técnico” – universidade de reconhecidos créditos em estudos da expansão portuguesa, como toda a gente sabe, e que nada tem de “oficial”, ao contrário de todas as outras do país, deduzo –), Fernão de Magalhães, um agente secreto aos serviço de D. Manuel de Portugal. Mais um agente secreto, como Colombo, portanto. JGF enumera uma série de interrogações e, naturalmente, responde em conformidade. Uma delas é divertida: porque é que Magalhães atravessou o Estreito e o Pacífico “com a aparente certeza de quem sabe o caminho que quer fazer, quase como quem o conhece de antemão e, uma vez próximo do destino, não se dirigiu de imediato às Molucas, antes desviando a frota para a direita (…)?”. Sim, porque não ligou o GPS ou ligou para o serviço de informações? – perguntaria eu também.
Nada de novo. Contudo, afirma que a viagem de regresso da armada de Elcano foi facilitada pelos portugueses, por instrução direta do rei. Não sei como conseguiu chegar a tal conclusão, bastaria ler o relato de Pigafetta para ter uma ideia clara do oposto. Na verdade, depois de sair de Timor, Elcano navegou diretamente em direção ao Cabo da Boa Esperança para evitar os portugueses; em Cabo Verde, os espanhóis reabasteceram-se e ocultaram a sua proveniência, afirmando que vinham do continente americano e que foram ali dar por acaso. Os portugueses acabaram por detetar a marosca e Elcano foi obrigado a arrepiar caminho, deixando cativos 13 dos seus homens. Não, não foram enforcados nem torturados, foram remetidos a Lisboa pouco depois e posteriormente libertados. Na Ásia aconteceu o mesmo; António de Brito capturou uns tantos e mandou-os para Cochim. Mas entre um tratamento suave e “colaboração” vai uma grande diferença. Não entendo como pode JGF dizer que Elcano “não só não os evitou [aos portugueses] como os contactou deliberadamente e foi mesmo discretamente protegido por eles em águas portuguesas num regresso que já estava planeado antecipadamente por esta metade do globo” (p. 340). Também não conheço o episódio do alegado encontro de Elcano com a nau de “Pedro Quaresma” (p. 352). Ignorância minha, certamente.
Na página 367 entramos na Parte III deste Factos Escondidos da História de Portugal, dedicada aos “Símbolos Eternos”. Aqui, o delírio ignorante de JGF atinge o seu apogeu, deambulando alegremente entre “um plano geoestratégico chamado Portugal”, Templários, Cruzados, Demanda do Santo Graal (que diz estar na origem do nome Portugal: “Por – Tu – Graal”), Painéis de S. Vicente e Padrão dos Descobrimentos. Tudo devidamente suportado pelo que chama de “investigadores mais «audazes»” – eu teria outros adjetivos para classificá-los – como Eduardo Amarante e Paulo Loução, sem falar de Freddy Silva ou da Nova Acrópole. O derradeiro e incontestável argumento de autoridade está na p. 378: Dan Jones, “autor do livro Os Templários, historiador e consultor da série televisiva Knightfall”. Imbatível, de facto.
Como não sou medievalista, abstenho-me de grandes comentários, mas detetei uns quantos disparates: achar que os “mouros” formavam um bloco coeso e imutável do século XII ao XV – misturando o aiúbida Salah-ad-Din e a queda de Jerusalém em 1187 com o otomano Mehmed II e a queda de Constantinopla em 1453, por exemplo – revela uma enorme ignorância. As premissas de que a tomada de Ceuta foi uma tentativa inédita de assalto ao Norte de África após um século de vazio, e que o seu sucesso foi efusivamente celebrado por toda a Europa, idem. Por fim, alegar que os Templários, depois de terem consolidado “a defesa das terras de Portugal aos mouros, começaram a interessar-se por um novo território, desta vez na África Oriental: o reino do Preste João, o rei cristão da Etiópia” (p. 375) revela, uma vez mais, que JGF fala sobre o que não conhece: na realidade, até ao século XIV, os europeus criam que o Preste João se localizava na Ásia Central, não na Etiópia.
A inclusão de bitaites acerca dos Painéis de S. Vicente e do seu significado é igualmente desconcertante. JGF, autoproclamado especialista em cartografia, náutica e História do século XVI, dá também uma perninha em História de Arte, numa questão tão simples como a interpretação dos Painéis. Tudo fácil, basta ler umas coisas e seguir uns autores “independentes”. Neste caso, Fernando Branco e o seu Os Novos Painéis de S. Vicente(publicado pela reputadíssima editora científica Chiado Editora). Relembro que se trata do mesmo autor de disparatadas teorias sobre Colombo e que fez pesar o seu currículo de professor catedrático de Engenharia no IST para fazer vingar (com financiamentos cuja aprovação, montante, origem e escrutínio nunca consegui apurar) um projeto de exumação de cadáveres e análise de ADN para provar que Colombo era, na verdade, o corsário Pedro de Ataíde. Les beaux esprits se rencontrent.
Não posso deixar de assinalar mais uma leitura errada de JGF, propositada ou não. Logo no início da Parte III, o autor exulta com a forma como “até os inimigos reconheceram a grandeza da nossa História” (p. 369). A prová-lo, cita o neerlandês Hugo Grotius e o “capítulo V do seu famoso livro The Rights of War and Peace”, com um excerto onde este autor do século XVII alegadamente tece “um dos mais rasgados elogios ao pioneirismo dos portugueses nas mais importantes descobertas por via marítima da História da Humanidade”. Fui verificar. Em primeiro lugar, a fonte está errada: o excerto não é do De Jure Belli ac Pacis (“Sobre o Direito da Guerra e da Paz”) mas sim do De Mare Liberum (“Sobre a Liberdade dos Mares”), onde Grotius elabora toda uma argumentação a favor da liberdade dos mares e contra as pretensões exclusivistas portuguesas. Ora, o que Grotius afirma é exatamente o contrário do que JGF diz. Grotius começa por alegar que havia muito que existiam contactos e comércio entre a Ásia e a Europa e que “os portugueses não foram os primeiros nessa parte do mundo”. Mas então, “alguns poderão argumentar”, não foram eles os primeiros a chegar, após séculos de interrupção, à custa de enormes trabalhos e perigos, e não deveriam ser elogiados por isso? Sim, “como todos os grandes descobridores, sempre que os seus esforços se dirigiram não para benefício próprio, mas para o de toda a Humanidade”. Porém, continua Grotius , como os portugueses enriqueceram subitamente e não permitiam que ninguém os seguisse, “não merecem nenhum aplauso, pois apenas consideram o seu próprio lucro”. Assim, o que JGF diz ser um elogio é, na verdade, uma acusação. Quem quiser conferir pode fazê-lo na edição/tradução de Ralph Magoffin (The Freedom of the Seas by Hugo Grotius, Oxford University Press, 1916, pp. 41-42; está disponível para descarregamento em http://archive.org ).
Chegamos, na p. 427 – finalmente – à Parte IV e final do livro: “A História de Portugal como Instrumento de Soberania”. É aqui que, finalmente, JGF diz ao que vem: “só não vemos o que não queremos ver”. Antes de explicar, o autor declara que “os erros da História Oficial de Portugal resultam de uma deficiente interpretação de documentos, com referências concretas, mal investigadas ou deliberadamente desprezadas” (p. 429). Gerações inteiras de historiadores e estudiosos recebem, portanto, lições do jornalista José Gomes Ferreira sobre como interpretar corretamente documentos. Já anteriormente havia mencionado a sua inutilidade, uma vez que são “na sua maioria pagos pelos contribuintes” (p. 160), e procedido de igual modo para com os especialistas da Marinha: “só quem não percebe nada de navegação à vela em alto-mar acredita que os quatro grandes navegadores europeus do início da Era Moderna, Cristóvão Colon, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Fernão de Magalhães, fizeram as respetivas viagens históricas pela primeira vez (…)” (p. 18); fica o recado para a Academia de Marinha (que deveria, quiçá, passar a chamar-se “Academia de Marinheiros de Água Doce”, já que não percebem nada de navegação em alto mar, ao contrário de JGF). Mais adiante, declara que “os historiadores oficiais não são pessoas livres” (p. 442), pois estão submetidos a uma “ditadura do pensamento único” (p. 450, e também p. 183) ou ao “politicamente correto” (p. 475). Esta alegada falta de liberdade dos historiadores tem, segundo o autor, raízes concretas: “para ser plenamente aceite e integrado na comunidade das nações europeias e americanas, (…) Portugal decidiu abdicar de reclamar um passado histórico muito maior do que o que vem nos livros oficiais” (p. 447). Deduzo que, como é indiscutível que essa “abdicação” nunca ocorreu durante o Estado Novo, o autor se refira especificamente a uma debilidade do Portugal democrático. Portanto, vivemos numa época em que a História se encontra deliberadamente amputada e truncada por opção política e institucional. Nas pp. 450-51, o autor conta como um dos tais “historiadores oficiais” (infelizmente não identificado) lhe deu discretamente razão e lhe confidenciou que “quem aparecer de repente a querer que todas as evidências de que a História foi diferente, até agora recusadas, sejam imediatamente reconhecidas, cai no descrédito. Mais do que isso, ou perde as condições para investigar, ou perde mesmo o lugar na academia”.
Está montada, portanto, a teoria da conspiração perfeita. Da evocação de “verdades escondidas” (embora evidentes) que deliberadamente são mantidas na sombra por uma academia submissa ao diktat político e aos interesses superiores ao esboçar de um projeto redentor vai um pequeno passo. Este projeto é, essencialmente, um formulário identitário de Portugal, nacionalista e islamófobo, que coloca o estudo da História ao serviço de uma causa. Há um parágrafo que merece ser transcrito integralmente:
“Se não tivéssemos combatido os muçulmanos no nosso próprio território e depois no território deles, poderíamos hoje fazer parte do Islão do Mediterrâneo Norte, dominados a partir de Casablanca ou Riade; e poderíamos nunca sequer ter sabido o que era democracia e defesa dos direitos humanos. Por isso, a atual recusa de utilizar o conceito dos «descobrimentos» e a negação da nossa própria História no seu todo, por razões de puro taticismo partidário e de posicionamento politicamente correto, representam uma grande desonestidade intelectual e uma enorme deslealdade, uma traição perante a memória dos nossos antepassados que tanto lutaram para construir um país livre e independente, integrado num espaço europeu de liberdade e cidadania solidária” (p. 455).
Como se deveria então fazer o estudo da História? Segundo JGF, através de “uma nova aposta no ensino e na promoção da História de Portugal”, com um programa de ação, de que destaco “mudar urgentemente a abordagem à verdadeira História de Portugal”, “acabar com os complexos de pequenez” e “combater os derrotismos”, alterando, primeiro, “os critérios da investigação histórica” e, depois, “construir um grande centro de interpretação da História de Portugal” (pp. 459-470).
Talvez incomodado com a amplitude do seu próprio entusiasmo patriótico, JGF encerra a obra com uma breve “justificação de motivos do autor” (pp. 471-477), talvez para tranquilizar o leitor, assegurando que “não é um livro de História; é um livro de Política”, que “não é um livro científico sobre factos históricos novos, é um livro de reinterpretação jornalística de factos históricos já conhecidos” e que, como não é historiador, está portanto “muito mais à vontade para elogiar ou criticar o trabalho de quem é especialista”.
Não irei alongar-me em considerações acerca deste projeto político, exceto dizer como me parece cientificamente obtuso, enviesado, historicamente obsoleto e politicamente perigoso nos tempos que correm, sobretudo porque assenta numa enorme ignorância, numa arrogância desmesurada e numa teoria da conspiração profundamente ofensiva para o trabalho, a inteligência e a independência de historiadores, estudiosos e académicos. É necessário dizer que esta obra está, do ponto de vista científico, ao mesmo nível de teorias da Terra Plana ou antivacinas. E que o facto de ter sido escrita por uma figura pública e diretor-adjunto de informação de um canal de televisão e que, por isso, mereça ali espaço em horário nobre e entrevistas noutros media constitui, decididamente, motivo de séria preocupação. Finalmente, que o facto de revelar manifesta e grosseira pressa e falta de cuidado, mesmo nos seus pormenores formais, mas de terem decorrido apenas 4 meses entre a sua conclusão (janeiro de 2021) e a sua publicação por uma grande editora portuguesa (maio de 2021), enquanto tantos trabalhos de investigação, monografias e teses de mestrado e doutoramento não vêem a luz do dia por falta de editor interessado, é bem revelador do panorama da divulgação da História em Portugal.
3 Comments
Obrigado pelo tempo que perdeu a ler livro tão “Código da Vinci” mas a querer dar ares de compêndio de historia.